A Carne Perpétua

Um bom livro de poesia é aquele que tem um volume expressivo de poemas bons – porque nada é perfeito. Um ótimo livro é aquele em que pouquíssimos poemas são ruins. Um excelente livro de poemas é aquele em que os poucos que não são incríveis, igualmente não são ruins.

Já peguei muito livro ótimo nesse tempo como resenhista e leitora crítica. Pra minha sorte, quase nenhum ruim, e muito pouco bom, a régua da qualidade dos e das poetas de literatura brasileira contemporânea é altíssima (se você é do tipo que só lê poetas mortos, não sabe o que está perdendo). Enfim, hoje vou falar de um livro excelente.

Vou começar essa resenha com uma dica de leitura de poesia que faz a diferença na hora de entender a qualidade do poema: leia no mínimo duas vezes. A primeira leitura silenciosa, íntima, que é onde você capta o conteúdo do poema. A segunda em voz alta, declamada, onde você percebe o ritmo e o impacto que o poema causa. É nessa soma de fatores que você classifica o poema entre fraco, mediano, bom e MINHA NOSSA SENHORA. Essa é a minha escala, por exemplo.

Dito isso, quando o livro A Carne Perpétua chegou às minhas mãos, a expectativa era alta porque, embora eu conheça muito pouco da obra de Lilly Araújo, eu sou quase uma expert na literatura de Viviane Santiago, minha cliente mais antiga de leitura crítica. Ainda assim, o foco geral da autora é em prosa, igualmente conhecia pouco do seu trabalho poético. Enfim, eu sabia que viria coisa boa aí.

Eu só não imaginava que era tanto.

O livro inteiro gira em torno das mazelas do universo feminino, das violências à maternidade sem o véu da romantização, por vezes sob o olhar da mulher, por vezes sob o olhar de uma narradora onisciente ou onipresente. Temos duas vozes que se completam de uma forma surpreendente; se não fosse incluído as iniciais da autora ao final de cada poema, seria possível facilmente acreditar que trata-se de uma poeta única.

Não é a primeira vez que leio livro de poesia em dupla, entretanto, na experiência anterior, o conhecimento da obra de cada autor me levou a identificar quase à perfeição o autor de cada poema mesmo que nenhum tenha sido assinado de forma aberta. em A Carne Perpétua, por exemplo, tentei o exercício de reconhecer a autora pelo teor do poema sem olhar as iniciais; errei quase todas as vezes.

A sintonia entre as duas autoras torna essa obra ainda mais interessante, exatamente porque nos presenteia com uma nuance nos pontos de vista sem, no entanto, fugir à coesão, à unidade da obra. Há um diálogo evidente, e me deixa curiosa o processo de escrita da mesma, para que cada autora conseguisse produzir seu conteúdo de forma a encaixar tão bem com o conteúdo da outra.

Durante a leitura, separei muito trechos que gostaria de ilustrar para vocês, mas separei MUITOS trechos mesmo. Embora vá sim trazer alguns deles, não tenho como, nesse espaço, retratar a dimensão da qualidade poética e estética desse livro. Vou tentar, mas já sei que vou falhar miseravelmente.

"Minha mãe,
antes de entender de que matéria-prima
são feitas as mães,
antes mesmo de compreender
a magina que lhe habitava por entre as pernas,
foi tecendo retalhos de esperança no seu ventre,
com tessitura poética.
"
"oito natimortos
que foram morar no céu,
um céu que eu inventei
por não ter onde guardar
tanta falta,
tantos filhos,
tantos rostos.
Quantos homens em minha cama
para fecundar um ventre
quase sempre
em luto."
"Os animais sabem mais do tempo
que todos os relógios."
"Retratos
pendurados
em desalinho
numa mureta sem prumo
de alcunha nova:
Feminicídio.
'A sociedade secreta das mulheres invisíveis'
ganha doze membros por dia
só no Brasil"

Trouxe pequenos, minúsculos recortes, apenas trechos de apenas 4 poemas que compõem o vulume; era preciso muito mais para transmitir a dimensão dessa obra, mas corria severo risco de transcrever o livro inteiro por aqui.

Nesses recortes, trouxe dois de cada autora, propositalmente não citados os nomes, que estão registrados pelas iniciais ao final de cada poema. Não vou priva-los de conhecer, no próprio livro, as nuances de cada uma.

Em tempo: reconheci, em alguns poemas de Viviane, conexão com sua prosa, em especial seu próximo lançamento, o qual tive o imenso prazer de fazer a leitura crítica.

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A Carne Perpétua

Lilly Araújo e Viviane Santiago

Telucazu: Jundiaí, 2023

117 páginas

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Lilly Araújo
Premiada poeta, artista plástica e bióloga, é metamorfose, mesmo às avessas. Publicou em 2016 o livro "Som do Coração", selecionado, pela Secretaria Municipal de Cultura de Anápolis, para integrar a coleção Anápolis em Letras Fatos e Imagens. Tem vários textos publicados em antologias, com classificações em concursos literários nas modalidades de poesia, conto e crônica.
Em 2014 foi empossada na cadeira 27 da Academia de Letras do Brasil - seccional Anápolis. Desde 2015 também é membro da ULA (União Literária Anapolina). Em 2020 recebeu o Troféu Natividade do 55.º FEMUP (Festival de Música e Poesia de Paranavaí). Pela Telucazu publicou Kafka FDP, Ùmidos Poemas e A Carne Perpétua.
Viviane Santyago
É jornalista e professora, autora de sete livros, todos premiados. Recebeu por sua obra As Dez Marias (Patuá, 2019) o primeiro lugar como escritora do ano no Prêmio Guarulhos de Literatura 2020 e o terceiro lugar como o livro do ano. A obra também venceu a primeira edição do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 200 Anos de Independência do Brasil (Ministério da Cultura 2018). Em 2020, foi a vencedora do II Prêmio CEPE de literatura infantil, com sua obra: A Biblioteca da Bia. Pela Telucazu Edições lançou seu primeiro livro, A Linha Amarela do Metrô (PROAC 31/2017), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2019. Seus mais recentes lançamentos: o infantojuvenil Caixa de guardar segredos de família (PROAC 20/2020) e Por amor eu te benzo, eu te curo, eu te livro: As Benzedeiras de São Paulo (PROAC 23/2020), Os Lares de Laura e A Carne Perpétua.

#Maya

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No meio do mundo

Vou confessar: essa é minha terceira tentativa de escrever essa resenha. Não que eu nunca tenha me deparado com a dificuldade de fazer uma resenha à altura do livro, mas é que nem todo livro, por melhor que seja (e eu já resenhei MUITO livro extraordinário), tem esse tanto de ensinamento.

É sério, esse livro não é propriamente um romance, embora André Kondo use a linguagem de romance para contar essa história, que é a história dele mesmo, em uma busca espiritual e filosófica por uma “verdade”, ou por Deus.

Costumo fazer marcações nos livros que resenho que contenham qualquer coisa que auxilie o leitor a compreender melhor a grandiosidade do livro, e os motivos que fazem valer a pena a leitura, em especial para um livro de mais de 400 páginas, e com o tanto de conteúdo que ele traz.

Se for para fazer um resumo bem pequeno, poderia dizer, de forma bem rasa, que é a jornada de dois irmãos gêmeos – Teru e Kazu – um representando a razão e outro a emoção, em busca de um ponto comum entre as crenças – religiosas ou filosóficas – de cada um. A busca por respostas. A busca pelo divino.

Não deixa de ser isso, mas esse resumo só contempla o objetivo dos personagens, e não a sua busca. André – que é ele mesmo Teru e Kazu – visitou pessoalmente lugares-chave nas duas vertentes da busca por respostas, e pôde ver, com os próprios olhos, o poder e a potência de cada cultura.

Os lugares visitados e descritos nessa jornada são (e a lista é imensa): Austrália – Japão – Singapura – Indonésia – Malásia – Tailândia – Camboja – Nepal – Índia – Laos – Vietnã – China – Mongólia – Rússia – Finlândia – Suécia – Noruega – Dinamarca – Holanda – Alemanha – Polônia – Áustria – Itália – Suiça – Espanha – França – Inglaterra – Grécia – Turquia – Israel – Palestina – Jordânia – Egito.

Aqui optei por não citar cada item do sumário ou a lista seria interminável, porque André organiza a viagem por cada cidade visitada. E pela primeira vez reservei uma caderneta intieira para anotar os principais ensinamentos, espirituais, filosóficos, científicos ou históricos apresentados no livro; iria fazer a resenha depois de compilar tudo na caderneta, mas é coisa DEMAIS.

André traz uma amplitude de assuntos, curiosidades e fatos como eu nunca tinha visto antes, nem nos livros de história, que nunca entraram nesse tanto de profundidade e menos ainda nesse tanto de temas. O livro praticamente nos oferece uma aula de história, história da fé, cultura, filosofia, ciência, sociologia e até literatura. Uma aula não, várias aulas.

E os irmãos absorvem cada aprendizado à sua maneira. Enquanto Teru explica as religiões, sua origem, suas lendas, seus ritos e seu impacto na vida de cada comunidade, Kazu apresenta a filosofia e a ciência como formas igualmente válidas de alcançar o divino, até porque filosofia e fé têm vários pontos de encontro em sua trajetória, e muito da ciência também foi feito buscando por um Deus – ou, mais precisamente, por explicações de fenômenos que foram/são atribuídos a um Deus em milhares de anos, praticamente em todos os lugares.

Talvez um dos méritos mais notáveis do livro não resida nessa compilação de lugares e culturas que André nos presenteia, mas a maneira com a qual lida com esse conflito razão x emoção, o quanto um completa o outro – tanto que Teru e Kazu são mesmo um só, o próprio André – e o quanto ele é capaz de nos levar na bagagem a cada um desses lugares. Alguns deles, inclusive, busquei imagens no Google e são exatamente como imaginei baseada nas descrições do autor.

E mesmo que busquemos todas as informações transmitidas por ele ao longo dessas mais de 400 páginas de jornada em outras fontes, há ainda o fator humano, as percepções dele, os ensinamentos que a emoção transmite à razão e vice-versa. Essa é absolutamente insubstituível, e quem bom que André optou por nos contar essa história na visão dos gêmeos, e não simplesmente como um roteiro de viagem.

Pensei muito em trazer trechos do livro, assinalei MUITOS que mereceriam tal referência, inclusive na minha caderneta já tem muita coisa anotada, mas justamente pela quantidade de conteúdo achei por bem não privilegiar nenhum. Para se ter uma ideia, nos países aqui listados, Teru e Kazu passam por cidades específicas, as vezes mais de uma por país, e em absolutamente todas as paradas os gêmeos têm algo a se aprender. Seja dos assuntos já mencionados, seja da experiência que eles vão tendo em cada lugar e com cada pessoas que conheceram nessa jornada.

“No meio do mundo” é uma experiência dessas que muda nossa perspectiva sobre muita coisa. Sabia muito pouco sobre as religiões politeístas do oriente, por exemplo, e mesmo sendo apaixonada por história e devoradora de relatos de fatos reais, André me trouxe, nessas páginas, mais conhecimento histórico do que em todo meu período escolar. Não à toa terminei a leitura ainda em fevereiro e demorei quase um mês para me aventurar por essa resenha. E não à toa ele demorou 20 anos para escrever.

Também é importante destacar que cada capítulo tem um QR Code que leva ao audiobook (seria legal ter também algumas imagens dos locais, embora tenha algumas no final do livro). Confesso que deu uma vontade danada de pegar esse livro e fazer uma rota igual para fazer minha própria busca. Quem não busca respostas? No fim do livro André nos conta o que ele encontrou, mas cada um pode encontrar uma resposta diferente, ao seu jeito.

Tem viagens que não podem ser feitas por nenhum meio de transporte. Esse livro é uma prova literária disso.

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No meio do mundo

André Kondo

Telucazu: Jundiaí, 2023

421 páginas

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Andre Kondo é nipo-brasileiro, autor de dezesseis livros, incluindo O pequeno samurai (Menção Honrosa Prêmio João-de-Barro e finalista do Prêmio Jabuti), Contos do Sol Nascente (Prêmio Bunkyo) e Contos do Sol Renascente (Prêmio Humberto de Campos). Recebeu mais de 300 prêmios literários, possuindo textos traduzidos para o japonês. Pós-graduado pela University of Sydney, viajou por mais de 60 países em busca de inspiração para a sua escrita. Morou no Japão, visitando as suas quatro maiores ilhas. É editor da Telucazu Edições e vice-presidente da Nikkei Bungaku do Brasil. Vive de literatura.

#Maya

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Poesia brasileira contemporânea Pt. 1

Aqui abaixo você vai encontrar um pequeno apanhado da nossa poesia brasileira contemporânea. São 12 poemas de poetas em todas as fases de maturidade poética: premiados, publicados, iniciantes, não-publicados. Há poetas convidados, há poetas que atenderam ao chamado pelo Facebook.

ROGÉRIO BERNARDES

inquilinato⠀⠀⠀

o homem que me habita
é barro esfarelado
de costela intacta
não tem pomo

a maçã apodreceu
na árvore

a serpente
sequer saiu do ovo
nem sairá

a gema matou fome
por um dia
e uma eternidade

...

o homem que me habita
não quer acordar
faltando osso

acordará mulher
de areia
úmida
compacta

até o vento me soprar
[aqui nunca foi o paraíso!]

...

a mulher que me habita
será livre pra pecar
ainda em jejum

dançará nua
à sombra da macieira

intactas!

Do livro ‘deus e outros ópios’ (Mondru, 2023)

VIVIANE SANTIAGO

Em sua companhia

Se der
a gente se encontra
na última lágrima de quando se esquece um amor,
aquela que sai quase sem querer
de um olho só.

Se der
me espere na última vez que brincamos na rua,
Rua Sete?
Não sei.
Não mais vi,
mas lembro daquele guri que quebrou a perna,
você também se lembra?
A gente com dó da dor,
e morrendo de medo de quebradura de ossos
ser mal contagioso.

Se der
venha ao meu encontro
no vigésimo sexto dia de quando se nasce um filho
na hora em que a criança chora.
O corte na horizontal lateja
[A mãe chora]

“Dorme menina do coração...”

Se der
marque na sua agenda
o dia de minha morte
metástase

a sétima praga
problemas no coração

[pelas próprias mãos]

acidente de avião

[não houve sobreviventes.]


— É mais fácil aceitar o fim se este fim for para todos?

Se der
me espera pra gente morrer
ou viver

[quem sabe?]

juntos.

THIAGO MEDEIROS

CERTA VEZ NOS TIRARAM GRANDES PEDAÇOS

dizem
de certa minha tia-avó
ser uma mulher
azeda

sem linhagem
sem amores
voz de lixa

minha bisavó

aquela que rezava
a tantos e tantas até
que murchassem os
galhos de arruda, eu
mesmo tantas vezes
afastado de quebranto
e olhado sob as rezas
de sua boca em carne
mole ausente de dentes

certa vez notou
que a mulher
azeda

[dizem que
já foi uma
menina e
teria sido
nessa
época]

não comia
toda a comida
do prato

e as sobras
não
iam ao lixo

decidiu
se esconder

a mulher
que ainda não era
azeda
mas uma menina
e diziam ser
minha tia-avó

punha as sobras
na barra da saia
e sumia no quarto

afastava a cama
abria uma caixa

- não sei do que
eram as caixas
naquele tempo

papelão
madeira
porcelana
ágata
zinco

mas caixas
sempre foram
esconderijos
para maiores
pequenos
amores –

minha bisavó
que desde sempre
rezava agarrada
em galhos de arruda
afastando quebrantos
doenças
mazelas
olhados
viu a filha
que ainda não
era azeda
nem minha
tia-avó
talvez
apenas
menina
alimentar um filhote
de rato

com a comida que preparava todos os dias

com a comida que mandava para meu bisavô todos os dias enquanto ele mutilava pedaços de terra com enxadas para então fecundá-la em sementes que não eram as dele

estranha
orgia
de metal
de homem
de planta
de terra

com a comida que cozinhava para as quatro crias todos os dias desde que parou de amamentar

quando rezava
minha bisavó
falava de São
Miguel Arcanjo

- aquele homem de saias
agarrado a uma espada
e balança, enquanto pisa
o rosto de satanás –
que protegia
o menino jesus
na manjedoura

quando rezava
minha bisavó
falava de São
João do Carneirinho

eternamente
menino
agarrado às lãs
dos cordeiros

quando rezava
minha bisavó
falava de Lúcia
Jacinta e Francisco

tão puros
anunciando
as palavras de
Nossa Senhora
de Fátima

quando viu o rato
ainda filhote
alimentado
amado
e até acariciado
pela menina que
não sabia que
seria azeda

minha bisavó disse coisas
mais ou menos assim

desgraçada

miserável

louca

imprestável

sua herege

dando comida de cristão a um bicho horrendo

não respeita meu suor

não respeita teu batismo

então
minha bisavó
obrigou a filha

- que não era
minha tia-avó
e não sabia nada
sobre azedumes –

a jogar o filhote
de rato
no galinheiro

às vezes
penso em
deus

me pergunto
se ele se
compadeceu
do filho

açoitado
cuspido
crucificado

[toda aquela
história
contada por
Mel Gibson,
você com
certeza lembra]

e se chorou
e se lamentou
e se houve luto

deve ser traumático perder um filho assim

mas estamos
falando de deus

não sei se a ele
cabem lágrimas
e dores e gemidos
e manhas e lutos

mas
se sentiu algo

foi bem parecido
com aquela menina
vendo o pequeno
maior amor

desses que escondemos
em pequenas
caixas

morrer sob os
bicos das galinhas

dizem
de certa minha tia-avó
ser uma mulher
azeda

LILLY ARAÚJO

A carne de Rosa

A carne de Rosa era dura!
Eu sentia quando brincava de mordê-la.
Era uma carne meio diferente,
e alguns diziam que nem era de gente.

Rosa, até no jeito de andar se destacava,
tinha umas ancas largas
e uma bunda obtusa que balançava.

Ah, Rosa! Eu me recordo muito claro
das vezes em perdia uma pétala no caminho,
entre a sua casa e o trabalho.

Mas a carne de Rosa era dura!

Ela tinha um olhar duro também.
Umas mãos duras, e dedos duros.
Um olhar perdido
como quem sonha com algo muito distante.
Mas o olhar de Rosa era macio
quando me esfregava com sabão,
e a fala dela ficava entre dura e zombeteira,
quando me mandava esfregar atrás da orelha.
— Seu encardido! — dizia me dando um gostoso sermão.

Seus dentes eram tão brancos,
mais brancos que o próprio branco,
quando ela sorria enquanto me enxaguava.
E das poucas vezes em que isso acontecia,
de vê-la sorrir assim,
podia mesmo jurar que ela nem era gente,
igual ao que muita gente falava.

Foi na ladeira entre a rua quarta
e a terceira,
que eu vi Rosa como ela era,
pela primeira vez,
em sua forma verdadeira.
(Rosa não era mesmo gente!).

Um barulho estrondou, e
ninguém sabia ao certo de onde vinha.
Agora tinha era pavor nos olhos de Rosa,
e eu, que era muito jovem para entender,
só ouvia sua prece citar nomes desconhecidos.
Obá, Ogum e Oxóssi — gritava.
— Salve-nos, oh, deus da guerra!

Enquanto o medo ia virando terror,
acho que a ouvi clamar por um tal de Xangô.
Nunca vim a saber depois,
porque gente branca
tem medo dos ‘deuses dos pretos’.
E eu jamais pude entendê-los.
Mas a carne de Rosa era dura!
Dura dura dura,
que nem um couro de javali
que o meu pai costumava citar em suas caçadas.

E sua mão, que era preta,
preta preta que nem breu,
puxou minha carninha branca
para dentro do seu abraço
e tremendo toda se encolheu.

A carne dura de Rosa parou todas as balas,
e de dentro dela nascia, pela segunda vez,
eu!

Do livro “A carne perpétua”, em parceria com Viviane Santiago (Telucazu, 2023)

ANDRÉ KONDO

O Chamado da Floresta

Meus pelos em matilha
buscam o vento,
que as vestes insistem em afastar.
Meu olhar volta-se para a Lua,
mas meus olhos capturados
voejam ao redor
das falsas luzes elétricas
das pálidas cidades.

Domesticados os sentimentos,
nada resta,
apenas a surdez absoluta,
e mergulhado no silêncio,
quando os olhos atravessam
a fronteira do ser,
por dentro ribomba
um eco
atávico,
uma fome
insaciável.

Liberdade.

Desperto
pelo mecanismo das horas,
ainda não esta noite,
quiçá um dia...

Prendo-me em vestes
e sou devorado
pela selvagem
multidão.

Um cão ladra
para o vazio.

Do livro “Peregrinação das Folhas Caídas” (Telucazu)

INGRID MORANDIAN

apenas uma garrafa de água
o porta retrato sem idade
a noite fria navegando através das cortinas
as asas desprendendo das costas
um pássaro buscou as minhas mãos
apertei meu sexo entre as coxas
marcado de selos-beijos
a sua boca ausente de palavras

alguma coisa presa nos cílios, talvez os peixes do lago
uma voz amornando

quilômetros de sonhos perdidos
fim da estrada
restou o entorno
os livros
no reflexo da janela
o ajuste de horas, dia-noite
risca-me o corpo
me vi enrolada em guardanapos
desapareci na mesa

FELIPE NASCIMENTO

Ali repousa Eros
Antes nu, agora encastelado,
Povoado de soldados.

República erguida na mão de mortos
Psiquê toma oitenta tiros
E é impossível racionalizar
A velocidade de uma bala.

Ali não repousa Eros,
Inquieto, buscando algum prazer no mercado
Mosaico de rostos refletidos nas latas:
Quem chegará perto então?

Tantos homens armados
A barba suja de sonhos pré-fabricados
A indecência do consumo
É sujar-se de trabalho alheio.

Psiquê, um cadáver endurecido,
É velado por seus parentes.
Toda razão um dia terá seu rigor mortis.

Todos os mortos do mundo
Começam a falar
Falatórios inúteis
De sonhos irritados por nunca terem sido concluídos

AVANI GOMES

Cantando na chuva

Amanheceu
saudades
notícias suas
prece por você
caminho e
a música
ao ouvido
me levam
Ao vento
A chuva
O vento
Me molham
o rosto
Carros
Respingos
Cheiro de mato
Sol,
música
Tudo ao meu redor
E chove
E danço
Danço na chuva
Te enterrei
a sete palmos
Tudo o que foi
E jamais será.
Por que me vejo
Remoendo,
ruminando
Tudo outra vez...
Dói me o estômago
Ânsia de vômito
Te enterro novamente
A sete palmos
Setenta vezes,
setenta vezes sete,
se necessário.
Quero ser leve
E livre
Passado,
Fique onde estás,
enterrado
E eu sigo,
Cantando na chuva....

LUIZ OTÁVIO OLIANI

Despedida

com fúria deixarei o mundo
aqui tudo será como antes
na secura das palavras
e no remorso vão

reminiscências do que fui
o desejo de ser alinhavo
certo de não levar mágoas
somente o que amei irá comigo

meu verso o passaporte
para um amanhã na eternidade

THAIS LEITÃO

Tanta coisa que eu queria poder explicar para aquela menina.
Queria poder dizer o quanto ela é incrível, inteligente, engraçada.
Que não há nada de errado com ela.
Que essa insegurança que ela sente é difícil, mas que por mais insuficiente que ela se sinta agora, ela não é.
Gostaria de abraçá-la e dizer que sei o que ela esconde atrás desse sorriso aberto que parece tão feliz.
Ser o adulto que ela não teve enquanto crescia.
Queria ter o poder de torná-la mais forte.
Preparar o coração dela para o que ainda estava por vir.
Por fim, queria dizer e repetir mil vezes o quanto ela é linda. Até que ela aceitasse isso.
Que ela vai aprender que nenhuma mulher deve ser valorizada apenas pela beleza.
Mas que ela tem que saber que é linda exatamente como ela é.
Queria ter estado lá pra ela.
Mas carrego ela eternamente aqui comigo.

FÁBIO CEZAR

Tempestade

a água invadindo nossa casa
  caindo pelo bocal da lâmpada
  saindo pelas tomadas
   escorrendo até o chão

minha mãe passando o pano no piso
como quem enxuga uma pista de patinação
meu pai subindo até o sótão
  tirando a água com a mão

a gente dormindo para tentar esquecer
ouvindo as goteiras pingando nos baldes na sala
  até o dia amanhecer

hoje as torrentes do passado deságuam em mim
e alagam as minhas lembranças
  onde nunca mais parou de chover

GRAÇA LOPES

L

Era tecelão hábil
unia bem meadas
novelos não perdia

Calmo tecia e atava
espanto a toda ponta
fios de elãs a linhas

(Trançar dia inteirinho
coser franja em esquifes
para enfeitar vazios

Deixar-se transpassar
às vezes ao se fundir
em seu macabro ofício)

"L" bordando a morte
quanto mais sustos tinha
mais corda dava à vida.

Aqui fica o convite para conhecer o trabalho desses e dessas poetas. Aqui fica o convite para conhecer a poesia brasileira contemporânea, vai valer a pena!

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O descobrimento do Brasil

Imagina um livro que fala de xenofobia, abuso, psicopatia, morte, repressão, fascismo, transfobia, acidente de trabalho fatal e vários outros temas espinhosos e dolorosos. Para os mais sensíveis parece um livro de leitura quase impossível. Mas acredite, não é.

Acredite, é um livro de leitura leve, fluida, onde é possível ficar cara a cara com toda a dor e violência que ele se propõe a explorar sem, em nenhum momento, nutrir o desejo de fechar o livro e nunca mais reabrir. Pelo contrário, é um livro que nos chama para ler mais.

Originalmente publicado de forma independente com o nome “A aspereza da loucura” (confesso, eu amei esse nome), esse conjunto de contos voltou, dessa vez pela Patuá, em 2023 já com novo nome. Embora “O descobrimento do Brasil” seja o nome de um dos contos, ele também é emblemático porque ele expõe, sem dó, mazelas comuns no nosso país, algumas comuns em milhares de famílias, como o trágico acidente que tirou a criança da mulher que nem queria ser mãe, ou o homem que, apaixonado, se distraiu no trabalho.

O conto que nomeia o livro, por exemplo, mostra, de forma indireta, o aliciamento de um rapaz para um assalto. Esse, inclusive, é um excelente exemplo dos recursos narrativos usado por Luigi, onde as histórias são narradas por mais de uma voz, nos permitindo conhecer várias camadas da história.

O resultado é escancarado: histórias complexas, com narrativas profundas, no espaço de um conto. Já me deparei com muitas histórias trágicas, com destinos sem direito ao final feliz, e não é uma tarefa fácil fazê-lo sem parecer forçado, sem parecer a tragédia só pela tragédia, e esse é um dos muitos méritos desta obra.

Partimos do primeiro conto, ou a primeira grande porrada que a gente leva: um protagonista refugiado do grande terremoto que destruiu o Haiti inocentemente observa vagas de emprego enquanto uma pessoa xenofóbica não poupa ódio contra ele. Ele sequer percebe até que… embora não haja qualquer leveza no destino do personagem, a escrita torna singela a tragédia, como um presente ao personagem oprimido.

Sempre fui favorável à descrição sem eufemismo, partindo da premissa que o sofrimento das pessoas reais não teve direito à leveza da escrita, mas é inegável que a forma como Luigi ameniza algumas tragédias não tira delas o peso que têm. Como em “Come chocolate, pequena”, o desfecho não surpreende por completo porque temos uma mãe enlutada desde a primeira linha, mas mesmo sem se aprofundar no desespero dessa mãe, o luto e o sofrimento dela é possível de se sentir nos ossos.

E o que se faz quando temos um assassino que não é o vilão da história? Não é incomum que a ficção nos deixe confusos de que lado nos posicionar. Quando o garoto humilhado e abusado, junto aos seus amigos, destroem seu opressor, tornam-se assassinos. Mas o quanto julgar um homicídio quando a vítima, desde cedo, abusa física e emocionalmente os mais fracos? Quem é a vítima e quem é o algoz?

Essa é uma pergunta sem resposta fácil, em especial quando o ponto de vista é somente de um dos lados. Tendemos a compreender mais esse lado. Mas está errado ignorar um crime hediondo cometido contra quem comete outros crimes em série.

Está errado sobreviver ao abuso para uma vingança posterior contra o abusador? Para além das questões morais impossíveis, Luigi também expõe situações bastante recentes do país, como o fanático que está disposto a provocar um homicídio em massa incentivado por um canal de ódio no YouTube.

E temos também os dois lados da psicose: o psicótico que se acredita vítima de uma sociedade que está em dívida com ele e o que nutre inocência, baixa cognição e analfabetismo que termina em tragédia. É culpa deles? Para quem sofre a violência, sem dúvida, mas há neles o discernimento necessário para entender a gravidade do que fizeram? Dois lados da mesma moeda. Embora sejam dois psicóticos, há maldade evidente em um e inocência evidente no outro. Um julgamento imparcial soa impossível.

Como se não bastasse, há a inadequação à si mesmo, há a exlcusão, o estranhamento a cada nudez da menina que não é menina, e não há ninguém que a acolha ou que possa lhe servir de abrigo. Há a memória do que não aconteceu, do irmão imaginando como seria sua vida ao lado da irmã que nunca pode estar ali.

“O descobrimento do Brasil” é o decobrimento de muitos brasis, aquele que não vemos, aquele que não queremos ver, aquele que está dentro da nossa casa, aquele que está na nossa pele. Ninguém disse que seria fácil se olhar no espelho.

Luigi brinca com suas narrativas como brinca com seus narradores, além de brincar com os leitores ao trazer uma obra que nos obriga a debater nossos próprios princípios com nós mesmos. Eu não sei responder nenhuma das perguntas das entrelinhas do livro, mas sei o quanto elas me tocaram.

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O descobrimento do Brasil

Luigi Ricciardi

Patuá; São Paulo, 2023

117 páginas

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Luigi Ricciardi é o nome artístico do paranaense Luis Claudio Ferreira Silva. Nascido em Londrina, morou muitos anos em Maringá antes de voltar para sua cidade natal. Formado em Letras Português/Francês, Luigi é fundador do Universo Francês, onde ministra aulas da língua de Molière. Publicou vários livros de contos antes de lançar Os passos vermelhos de John: ou a invenção do tempo (Penalux, 2020), seu primeiro romance. O escritor mantém a Acrópole Revisitada, canal literário no YouTube criado durante seu doutorado em Literatura. Foi professor da UEM e da UEL. É um dos tradutores do livro As revelações de Arsène Lupin (Madrepérola, 2022). O descobrimento do Brasil teve sua primeira edição em autopublicação em 2018 com o título de A aspereza da loucura. Revista e reescrita, a obra sai agora pela Patuá.

#Maya

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Paganíssima Trindade

Mô não é nenhuma estranha por aqui; nos tempos em que publicava textos avulsos ela apareceu por aqui, ainda antes de reunir seus poemas em um livro. “Paganíssima Trindade” é um livro diverso, que não se propõe a discutir um tema único.

Indo para um lado mais pessoal (e não muito profissional de minha parte para uma resenhista), conheço a Mô há anos e sempre a vi sofrendo com uma insegurança imensa de seu trabalho; quando publiquei seus poemas avulsos cheguei a falar sobre isso, sobre o quanto ela é uma boa poeta e precisa reconhecer isso.

A leitura da obra “Paganíssima Trindade” é uma confirmação do que eu já sabia. Mô é uma poeta em fase de amadurecimento, mesclando poemas que mostram esse amadurecimento e outros em processo de crescimento poético. Mesmo nos poemas menos expressivos, alguns elementos trazem seu potencial.

Há uma disposição dos poemas peculiar e que pode soar um pouco cansativa com o andamento do livro, como logo em seu começo, em que vários poemas em sequência falam de pernas, mesmo que as mesmas não sejam protagonistas. Em outros momentos acontece o mesmo fenômeno som temáticas diferentes, como se a autora estivesse tratando especificamente sobre o tema. Em exemplo, nas páginas 106 e 107, espelhadas, estão os poemas “Tem uma pedra” e “Empedrada”

O “cansativo” fica por conta de não haver uma separação temática dentro do livro; caso a autora tivesse subdivido o livro por tema, o leitor estaria preparado para cada sequência. Entretanto, há um simbolismo – talvez acidental – no uso das pernas como imagem de abertura; afinal, existe uma caminhada pela frente.

Diversos poemas se destacam ao longo do livro, seja pela história narrada – porque algo bastante comum nos poemas é justamente a capacidade de contar histórias – ou por versos que realmente impactam no leitor.

Logo no princípio do livro, em justamente um poema intitulado “Pernas”, Mô faz uma metáfora bastante interessante com saúde mental, uma vez que coloca pernas na cabeça, capazes de chutar, andar trêmulas, cair, tal qual uma pessoa em sofrimento por uma cabeça desfuncional que agride sua existência. Em outro poema que segue a mesma lógica de saúde mental, a narradora se questiona sobre os cortes produzidos por uma ampulheta quebrada, uma mistura entre o sangue e o tempo que a ampulheta representa.

Entre os versos de impacto, em “Estrutura Óssea”, Mô não completa porque todo o poema tem sua explicação ao longe de toda sua extensão. As vezes pensa que, e lá se vão inúmeros exemplos até que finaliza:

As vezes penso que

Poucas vezes não penso que

Também há rima. Não é o aspecto mais comum do livro, mas há rima que dá um bom ritmo aos poemas selecionados, como “Memória”:

(…)

Distraída disfarço

a falta

o cansaço

Retraída

eu perco

esta dança

e o compasso

Ou em “Dilema de Sophia”, aqui integral:

O cutelo cortou o pensamento ao meio

Gêmeos

um de dor

outro de folia

A cabeça mãe sofrendo

não se dava o direito de escolher

o filho que queria

Em “Tempestade de Areia” Mô vai direto ao ponto, definindo a dor com uma imagética bastante interessante em metáforas bem construídas. Já em “Espelho Meu” segue a mesma linha de “Ampulheta”, da quebra, da imagem possível de um sofrimento convertido em palavras. Em “Espelho Meu” são os cacos do espelho que contam sua história e refletem seu “eu” fragmentado em pedaços.

A tristeza, a dor, a melancolia e a depressão chegam sem qualquer disfarce. Em “Desdepressão” o sentimento é escancarado:

É estar bem pelo contraditório do breu

É aprender a tal afirmação do EU

É saber que existe uma alça

no fundo mais fundo do poço

e que o braço

embora flácido

por conta

do não movimento deprimido

tem sua força

sabe-se la como

(importa saber como?)

para se alçar

feito asa

A desdepressão

é estar em brasa

A força da imagem está presente em diversos poemas, em especial conectado ao choro, ou ao não-choro e seus prejuízos, como em “Deserto”, em que a incapacidade de expelir a lágrima salgada desertifica, que esse sal na garganta não fere os olhos, por onde não sai, mas o coração de quem o carrega.

E as vezes também brinca, em especial nos pequenos poemas, de poucos versos, como no caso de “Miúda”:

Escrevo em palavra

pequena

para o subentendido

vazar

por entre

as frestas

O mesmo acontece com “Andança”, onde a rima também se destaca:

Pedir arrego

é pisar em falso

Ninguém sabe os meus calos

nem os sapatos que calço

Entretanto, um dos poemas de maior impacto, com uma narração forte e uma finalização inesperada vem em “Coragem”:

Coragem não é ser forte

É descobrir

que não há monstro embaixo da cama

É descobrir

que o monstro vive na cabeça

Coragem não é ser forte

É coisa que acontece

Que nos dá um porte

uma adultice não cronológica

Para chegar à idade da coragem

É preciso ser a criança

que brinca com o monstro

embaixo da cama

Outros poemas consagrados também ganham sua homenagem nessa composição. O poema “Tem uma pedra” é de fácil reconhecimento, por exemplo:

Uma pedra me encontrou no caminho

Me desafiou

Seguir adiante exigia escalada

e a pedra lá

irredutível

Mudei de caminho

E quase no encerramento do livro, Mô não disfarça: tem mais no livro do que o leitor percebe, e diz isso claramente no poema “Dito”:

A poesia mistura

alhos com bugalhos

joio com trigo

E nos diz:

eu te digo mais do que pensas que falo

Há dor, há melancolia, e também há espaço para crescimento nessa poeta que quase não se reconhece como tal. Vitória seria que Mô insistisse na sua arte e se aprimorasse a cada dia, porque o melhor de cada escritor se revela com a coragem de continuar tentando.

O livro “Paganíssima Trindade” vai além do título curioso. Tem uma alma de uma poeta que não tem medo de expor o sofrimento de uma alma atormentada.

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Paganíssima Trindade

Mô Ribeiro

Penalux; Guaratinguetá, 2020

126 páginas

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Mônica Ribeiro, ou Mô Ribeiro, é mineira de Belo Horizonte. Arquiteta de formação, descobriu-se poeta por insistência do inconsciente. Participou da antologia É Urgente o Amor, Edições Vieira da Silva, Portugal, e também da Antologia Ruínas, da Editora Patuá. Foi publicada pelas revistas Caliban, Desvario, Germina, Literatura & Fechadura, Mallarmargens, Mirada, Revista de Ouro e Revista Ser MulherArte, entre outras. Nasceu em 1971 e deu trabalho para vir à tona: o parto foi de fórceps. A escrita, ao contrário, vem nas contrações que dão à luz seus poemas. Partos rápidos, mas não sem dor, e depois o cuidado com a cria. Assim é sua escrita.

#Maya

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Emma e o poliamor

ALERTA SPOILER: trata-se do segundo volume de uma trilogia. Recomenda-se que leia o primeiro antes dessa resenha.

Anos atrás estabeleci como regra que não resenharia alguns gêneros por limitações minhas mesmo. Um desses gêneros era o erótico, por desconforto pessoal com o gênero e desinteresse em explorar mais o que ele oferece. Mas o tempo passa, os conceitos mudam e eu fui entendendo a diferença nada sutil entre o erótico e o pornográfico.

A partir da quebra das minhas próprias barreiras e limitações, pude compreender que, embora o erotismo já seja bastante explícito, ele não se limita ao sexo apenas como uma descrição sem uma razão de ser que não a própria finalidade da pornografia em qualquer que seja o veículo.

Embora não negue que o gênero me causa desconforto, sempre deixei claro que esse espaço desconsidera minhas questões e opiniões pessoais. Quem visita este blog está interessado na análise crítica do livro realizado por mim enquanto profissional, e não na minha opinião pessoal acerca do mesmo.

Dito isso, aceitei o desafio de iniciar 2024 com a primeira resenha de um livro do citado gênero, ainda como uma aprendiz em estabelecer o olhar crítico tão necessário para realizar esse trabalho com o mesmo cuidado e respeito com o qual realizei as mais de 200 resenhas com compoem o acervo do blog.

Não há pudor. Passei a admirar a coragem de autoras e autores do gênero em quebrar tabus e falar abertamente de sexo em uma sociedade que o incentiva e o criminaliza ao mesmo tempo. E quando falo em “abertamente”, falo de forma explícita, com direito a descrições bastante claras do corpo e do ato em si.

Em “Emma e o poliamor”, Ilana Eleá nos apresenta Emma, uma sueco-brasileira que tem a sexualidade e o empoderamento feminino como tema de sua dissertação de mestrado, e o foco do seu trabalho é justamente a liberdade sexual e amorosa em modelos não-monogâmicos de relacionamento, nas suas mais diversas variáveis.

Antropóloga, Emma tem como objetivo inicial observar casais que se relacionam de maneira aberta ou poliamorosa sob supervisão da psicanalista Caia, além de trabalhar casos individuais como a camgirl Juliana, que mantém um relacionamento aberto com Nicolas. Aberto, mas nem tão aberto assim. Juliana estabelece regras as quais Nicolas tem dificuldade de manter quando se envolve justamente com Emma.

Já desde esse primeiro momento, com o caso iniciado com Nicolas, Emma reconhece que ultrapassou os limites éticos de sua função como pesquisadora e, em mais de uma ocasião, teme ser denunciada e perder sua bolsa de pesquisa.

Mas o receio de Emma não a impede de seguir se envolvendo mais e mais com o tema, de forma bastante pessoal colocando, inclusive, seu próprio relacionamento monogâmico em risco. Com a ajuda de Caia e Ava, uma mulher adepta não apenas do poliamor, mas das casas de swing, Emma é apresentada a um universo de modelos de relacionamento que vão de metamores, trisais até bondage, a qual Emma experimenta como uma técnica erótica que não envolve afeto ou contato físico, digamos, profundo.

Ilana, nesta obra, nos conduz à própria autodescoberta de Emma, do seu corpo, dos seus desejos e prazeres, do seu desejo de liberdade sexual e seu conflito sobre os limites éticos da sua pesquisa, deixando o papel de observadora para participante ativa de cada experiência.

Sua entrega revela que o interesse no assunto nunca foi meramente acadêmico, mesmo que ela não tivesse completa noção disso quando iniciou sua pesquisa. É provável que a pesquisa tenha nascido de sua inquietação sobre o modelo que norteava sua relação com o namorado sueco, tão distante do calor carioca que a levou diretamente aos braços de Nicolas.

E a autodescoberta vai muito além de seu corpo e sua sexualidade: ela também se descobre dentro de seu núcleo familiar quando uma emergência a leva de volta ao país europeu para reencontrar os pais e o namorado. As farsas perdem espaço quando Emma entende que o modelo de relacionamento que ela se propôs a contestar é, de muitas maneiras, um modelo falido, e que os amores não foram feitos para conhecer limites.

A desconstrução do ciúme, a exposição do sentimento de posse e a exposição que o poliamor ou outras formas não-monogâmicas de relacionamento nunca foram novidade no universo masculino, mesmo que de forma secreta, foi à mulher a negação do direito de viver sua sexualidade plenamente. Emma, inclusive, junto às mulheres com quem interage ao longo de sua experiência, aponta que o julgamento recai somente sobre a mulher, enquanto o comportamento poliamoroso do homem é visto como instintivo, da natureza masculina.

Embora se trate de uma obra de ficção, Ilana não se priva ao debate, aos conceito e à exposição crua de uma realidade que sempre existiu, só se tornou mais explícita com a emancipação feminina sobre os próprios desejos.

Entretanto, não posso ignorar pontos que merecem atenção. Não é somente a falta de ética de Emma que grita, tornando sua participação enquanto pesquisadora extremamente questionável e inadequada para a imagem de pesquisadores reais – Emma parece completamente incapaz de manter o autocontrole diante de situações que considera excitantes, e isso acontece diversas vezes ao longo da narrativa – mas também a participação de Caia enquanto psicanalista.

Temos uma profissional que recebe Emma em seu consultório e cuja conduta nada lembra a psicanálise, uma vez que seu trabalho é basicamente conduzir casais confusos para um modelo não-monogâmico da relação. É quase uma indução que culmina em um evento coletivo cuja terapeuta providencia transporte à cidade turística de Paraty para uma desconstrução do ciúme. A passagem é confusa com a chegada de outro grupo conduzido pelo profissional de bondage que Emma passou a frequentar, e há, nessa sequência, uma cena de sexo envolvendo a psicanalista, o que deixa a narrativa um tanto desconfortável.

Tendo a ver Emma como uma pessoa em conflito com suas autodescobertas em contraste com sua reconhecida falta de ética, mas ao mesmo tempo não parece que sua formação em antropologia seja páreo para seu gosto por sexo e a facilidade com que sua excitação a desvia do caminho da sua formação acadêmica.

OBSERVAÇÃO: precisamos estar sempre abertos ao aprendizado. Em diálogo com a autora, ela me esclareceu que ela mesma é profissional da área e pesquisadora, e que, portanto, houve embasamento na construação das personagens aqui citadas. O envolvimento pessoal com a pesquisa não é um fato incomum – talvez o grande choque seja pelo puritanismo uma vez que se trata de sexo. Igualmente existem psicanalistas que atuam na área. Não alterei a resenha em si por assumir minhas impressões, mas é importante que se façam ressalvas que valorizem o trabalho de construção e pesquisa do autor, por isso tomei a iniciativa de trazer esse esclarecimento, sem que ele tenha sido solicitado pela autora.

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Emma e o poliamor

Ilana Eleá

Patuá; São Paulo, 2022

184 páginas

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lana Eleá é doutora em Educação pela PUC-Rio e mora na Suécia desde 2011. Autora dos livros Encontros de neve e sol (e-galáxia, 2017), Poemas Acesos (Patuá, 2020), Emma e o Sexo (e-galáxia, 2021) e Fio de corte, escrito com Lucelena Ferreira e Ângela Brandão (7letras, 2022). Emma e o Poliamor é o segundo volume da sua trilogia erótica Emma. Atualmente se dedica aos estudos para obter o título de Certified Sex Coach pela instituição norte-americana Sex Coach U e faz cursos na área de Sexologia nas universidades suecas de Malmö, Gotemburgo e Estocolmo.

#Maya

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Encarando de frente

Quando nos deparamos com uma obra chamada “Espelho”, sabemos que vamos encontrar ali ou a alma do poeta, ou a nossa. No caso, a mistura das duas coisas, porque todo poema é um pouco (ou muito) íntimo, e mesmo assim coletivo, porque todo mundo se encontra em sentimentos comuns e situações as quais ninguém escapa. A morte, por exemplo.

Um espelho é uma superfície plana que descortina um universo inteiro sem qualquer tecnologia ou artifício. É mais ou menos essa a definição que posso trazer, de forma muito objetiva, sobre o livro “Espelho”, de Armando Severo.

Não costumo – nem pretendo começar – fazer juízo de valores sobre o poema alheio porque sua grandiosidade, beleza ou qualidade não se mede por qualquer conhecimento técnico, mas pelo tanto que é capaz de tocar o leitor. Se tocar um leitor, é um poema que atingiu seu objetivo.

Digo isso não como uma forma crítica – ou algum tipo de indireta sobre a qualidade dos poemas de Armando – mas exatamente porque a simplicidade que o autor emprega em seus poemas pode ser o suficiente para críticas severas de quem ainda considera a poesia um privilégio de poucos. E muitos assim a tratam, afastando de um público universal, transformando a poesia em artigo de luxo.

É por isso que aprecio a coragem de quem faz poesia simples. Por incrível que pareça, é mesmo um ato de coragem. Com tanta cobrança pelo poema perfeito, pela estética, métrica e outras coisas totalmente irrelevantes para o público leitor, publicar uma coletânea de poemas simples, sem firula, sem palavras impossíveis, é bater de frente com um sistema falido de falsos intelectuais para falar diretamente com quem lê.

Armando Severo propõe uma leitura fácil. Aquela que tira o argumento de quem não lê poesia porque não entende. Poemas curtos, fluidos, claros. Combinam com nossos tempos modernos.

Eu, adepta do lirismo Romântico, me sinto em apuros para julgar um trabalho poético que não se encontra com o que me encanta. No entando, li o livro de Armando em um fôlego só. Porque não cansa. Porque não complica. Veja como começa o livro:

Acessórios

Defeitos tenho,

os torno meus.

Portanto,

me são caros.

Não apenas é o primeiro poema do livro, como integra um segmento chamado “reflexo”. Eis que entramos na parte que me cabe criticar. Fosse Armando meu cliente de leitura crítica, estando o livro ainda no original, recomendaria a supressão das divisões da obra. O livro é dividido em “reflexo”, “projeção” e “refração”. Seria uma divisão brilhante para um livro chamado “Espelho” de houvesse de fato essa diferenciação temática no livro.

Os temas são contundentes e consegui perceber isso muito bem em “reflexo”, já “projeção”, pegando seu sentido mais psicanalítico, não me pareceu mergulhar de fato no tema. Em “refração” havia a possibilidade de tratar das distorções da vida, um tema riquíssimo, mas quase nada explorado.

Importante frisar que a crítica é por haver divisões sendo que os poemas não estão, de fato, enquadrados na temática, não sobre os poemas em si. Em termos gerais, repito o que já foi dito: é uma leitura fácil, sem complicadores desnecessários. Poesia para quem acha que não entende poesia. Poesia para todo mundo.

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Espelho

Armando Severo

Invencionática: Porto Alegre, 2023

101 páginas

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Armando Steglich Severo, 55 anos, é natural da cidade de Taquara, onde é funcionário público por concurso e poeta por resistência. Faz parte da Ordem da Confraria dos Poetas onde em 1999 teve cinco poemas selecionados para a Coleção Poética – Coletânea da Ordem da Confraria dos Poetas, Editora SHAN – Porto Alegre. Ainda em 1999 lançou seu primeiro livro de poemas intitulado “PULSAR” numa edição independente. Em 2000 teve um poema selecionado para compor a Coletânea TIMOR Esperança da Ordem da Confraria dos Poetas, Editora SHAN. Foi um dos vencedores do Concurso Poemas no Ônibus edição 1999/2000 realizado pela Prefeitura de Porto Alegre através da Secretaria Municipal da Cultura – Coordenação do Livro e Literatura/SMC. Em junho de 2022 publicou o livro de poemas “Em tempos de reclusão” Editora PROVERBO – Maricá RJ, que conta um pouco da sua experiência após ter contraído a COVID-19. Por iniciativa própria, encomendou a transcrição para o Braille de 16 edições do “Em tempos de reclusão” e está distribuindo às Bibliotecas Municipais da região do Vale do Paranhana. É integrante da Diretoria e um dos idealizadores do CEAP- Coletivo de Escritores e Artistas do Vale do Paranhana.

Antes de virar modinha

Falar em mortos que levantam de suas tumbas, hoje em dia, não parece exatamente algo muito original com a proliferação de livros, séries e filmes que tratam dos mortos-vivos, os famosos zumbis. Mas eles não são nenhuma novidade, embora cada um dê a eles sua própria roupagem.

Há uma certa desonestidade de minha parte falar de “Incidente em Antares” como um livro de zumbi – até porque não é – mas é interessante se pensar na maneira como Erico trouxe, em 1971, a ideia dos mortos que levantam das tumbas e circulam entre vivos. De uma maneira um tanto forçada, eu diria que houve uma involução desses seres depois de Erico, porque foram de mortos capazes de se expressar perfeitamente para corpos em movimento que não são nada além de seres irracionais famintos.

Voltando aos mortos de Erico, “Incidente em Antares” é um de seus últimos livros e trouxe toda sua experiência em lidar com uma longa linha temporal e histórica. Durante praticamente metade de um volume de 490 páginas, Erico nos conduz por toda a história da pequena cidade de Antares, às margens do Rio Uruguai, antigamente pertencente à São Borja (RS), e essa história, iniciada entre 1830 e 1831 culminando no incidente de 1963, se mistura com a própria história do Brasil.

Ao longo dessa primeira metade, somos apresentados às famílias Vacariano e Campolargo; a primeira legítima fundadora da cidade, a segunda, mesmo chegada depois, alcançou o mesmo status de autoridade, gerando imediatamente um clima de hostilidade brutal entre ambas.

Por brutal, me refiro a guerras com mortes violentíssimas dos dois lados, num estilo Shakespeare gaudério, até que Getúlio Vargas, necessitado de apoio em sua trajetória política que o levou duas vezes ao poder, consegue quebrar décadas de ódio mortal, transformando, inclusive, a geração seguinte ao aperto de mão, em amigos confidentes.

É essa a relação entre coronel Tibério Vacariano e a matriarca Quitéria Campolargo, ou apenas Dona Quita. Cientes do ódio entre seus antepassados, esses dois grandes amigos têm uma dinâmica fascinante pelo excesso de sinceridade entre eles. Embora representante de uma das famílias dominantes de Antares, Quita é praticamente uma santa perto de Tibério, que é a personificação de toda a má fama de coronéis e políticos. O estereótipo completo do macho alfa que se sente e se sabe no direito de pisar em quem ousar cruzar seu caminho.

Tibério nada mais é do que a continuidade dos Vacarianos, que sempre estiveram com o poder nas mãos – inclusive estando acima de qualquer autoridade – e Erico não poupa detalhes dos movimentos que tornaram Antares o cenário perfeito para se exalar a podridão da decomposição de seus defuntos em 13 de dezembro de 1963.

Depois dessa trajetória histórica, chegamos à greve. Às portas do golpe militar, todo e qualquer cidadão que defendesse direitos e que se voltasse contra a crescente miséria da favela antarense era imediatamente rotulado de comunista, o que incluiu o jovem padre Pedro-Paulo, apelidado de “padre vermelho”. Fazendo um comparativo tosco, me lembra o padre Júlio Lancellotti, cujo trabalho árbuo em prol das populações vulneráveis e em situação de rua lhe garantiram o mesmíssimo rótulo e muita hostilidade e violência.

A chegada da greve antecedeu a loucura que se desenrolaria no fatídico dia, em que os coveiros, apoiados pelos grevistas, se recusam a enterrar os mortos do dia – 7 no total, um grande recorde. Com os caixões do lado de fora do cemitério, uma tentativa de furto contra a mais ilustre do grupo, Dona Quita, resulta em seu despertar (ainda que morta) e abrir o segundo caixão, do advogado corrupto Cícero Branco.

A partir daí vieram o sapateiro anarquista, o suposto líder comunista morto sob tortura, o bêbado, o músico que não suportou a própria existência e a prostituta que morreu de negligência médica. Decididos a garantir seu enterro, representados pelo advogado, seguem, já em processo de decomposição, à praça da cidade com uma boa dose de acusações contra os maiores figurões de Antares.

Mesmo sem saber que morreria, Cícero tinha tudo o que precisava para expor todos os membros de uma casta corrupta e cruel. A presença dos defuntos no horário mais quente do dia espalhou a podridão pelo ar, deixando um rastro não apenas de um cheiro insuportável, mas de ratos e urubus dispostos a devorar os cadáveres ali mesmo, enquanto eles seguiam agindo como se ainda estivessem vivos.

Os efeitos foram imediatos: um surto coletivo seguido da “Operação borracha”, homenagens aos acusados e todo um trabalho de acobertamento das acusações feitas. Nada fora de uma realidade que não mudou. O livro inspirou a série de mesmo nome que estreou na Rede Globo em 1994, posteriormente sendo adaptada para um filme.

É importante mencionar que o livro foi publicado em 1971, em plena ditadura militar, e boa parte das críticas políticas que Veríssimo traz na obra encaixam com perfeição ao período histórico que deu origem à obra; ainda assim ela não foi censurada. Talvez o uso do realismo fantástico com as denúncias proferidas pelos mortos tenha contribuído para o feito, o fato é que a podridão que cercou as denúnicas é uma das alegorias mais bem sucedidas para reforçar o que de fato ali acontecia.

Apesar de achar que a contextualização histórica foi mais longa do que o necessário, reconheço que se trata de um trabalho do maior nível de capricho possível, uma pesquisa profunda para conferir o máximo de realismo a um enredo absurdo, e funcionou com a maestria pela qual Erico Veríssimo foi consagrado.

“Incidente em Antares” é um livro atemporal pelos motivos mais extremos: pela sua indiscutível qualidade e porque os absurdos nos bastidores do poder seguem como uma realidade sem prazo para terminar. Mais de 50 anos depois da sua publicação, segue tão relevante e atual como se fosse recém-lançado.

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Incidente em Antares

Erico Veríssimo

Editora Globo: São Paulo, 1971

489 páginas

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Erico Veríssimo dispensa mini bio. Certamente um dos mais brilhantes escritores da história da literatura brasileira, multipremiado, consagrado, cânone.

#Maya

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Entenda o contexto

Tempos atrás a Global lançou um box com três obras do Ignácio de Loyola Brandão ligadas à ditadura. O preço tava bom, sabia de fama do autor como extraordinária e até me sentia desconfortável por não conhecer a obra de um autor tão consagrado. Mas estava ali quieto. E então veio a planilha nova de obras do projeto PRAÇA CLÓVIS, encabeçado por pesquisadoras da UnB que pretende oferecer um site de resenhas com as mais diversas obras desde a década de 1970 – caso desse livro.

É minha segunda participação no projeto. Assim que abri a planilha, me deparei com “Incidente em Antares”, de Erico Veríssimo, obra que tenho curiosidade desde a infância. Na minha segunda visita à planilha encontrei “Zero”, do já citado Ignácio. Bom, eu já tinha o livro, custava nada ler. Selecionei. Para meu completo desespero.

Não, Zero não é um livro ruim, antes que eu faça parecer, mas é um livro difícil, estranho, facílimo de se perder e de terminar em estado catatônico procurando o sentido da vida nas paredes do quarto. Precisamente o que aconteceu comigo, por sinal.

Assim que abri as primeiras páginas, fiquei fascinada com o estilo completamente inusitado da narrativa, pensando que talvez fosse ele o mestre mentor de um autor experimental como Leonardo Valente, por exemplo, um contemporâneo que não tem medo nenhum de deixar o leitor meio zureta. Ou Fernanda Caleffi Barbetta, que não é experimental mas também não curte uma narrativa dentro dos moldes das oficinas de escrita (inclusive a minha, a qual ela mesma foi aluna). O fascínio foi se apagando conforme eu fui me dando conta que a resenha que eu tinha que fazer não era livre como a que eu faço aqui e eu achei sinceramente que não daria conta de juntar todos os pedaços e escrever algo com um mínimo de coerência.

O causo é que o mesmo modelo de resenha que começou a me dar medo foi o que me salvou a leitura da obra, porque ele exige um bom passeio pela trajetória do autor e contexto histórico em que o livro foi escrito/publicado. E aí a coisa começou a fazer sentido. Mais simples do que parecia: Ignácio foi um jornaista que teve inúmeras matérias picotadas pelos censores da Ditadura Militar, e foi justamente essa colcha de retalhos que virou seu trabalho na redação que inspirou Zero.

De um sujeito completamente medíocre e alienado a um rebelde raivoso e homicida, José, o protagonista, tem sua história completamente desprovida de uma sequência lógica interrompida por notas e fragmentos de histórias que não têm qualquer conexão com a história. Meu desespero quando comecei a ler o livro foi justamente me deparar com esses fragmentos esperando que eles viriam a ter qualquer participação futura e eu não daria conta de trazer tudo isso para uma resenha só.

Mas não tinham. Assim como a estrutura dos jornais retalhados pela censura, a história que está sendo contada – de José e seu casamento disfuncional com Rosa – vai sendo interrompida por notas e fatos que não fazem nenhum sentido. Na ditadura era assim que os jornais conseguiam preencher as páginas: fragmentos das matérias legítimas e um monte de bobagem para ocupar o espaço deixado em branco pelos cortes.

O livro é, em total essência, uma denúncia à censura, mas não se restringe à forma; entre uma narrativa desconexa e outra, o autor não se priva de relatar explicitamente os horrores desse período sombrio – e talvez o mais fascinante é que os censores pegaram a obra pelas cenas de sexo e palavreado chulo, mas não perceberam as denúncias EXPLÍCITAS.

Zero tem um valor histórico incalculável, mas não é uma leitura fácil – no meu caso, nem agradável. Acho importante e relevante ter lido, mas é preciso saber que a leitura é muito mais uma experiência do que efetivamente o contato com uma narrativa ficcional.

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Zero

Ignácio de Loyola Brandão

Global; São Paulo, 2019 (originalmente publicado na Itália, em 1974)

301 páginas

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Currículo resumidíssimo porque inteiro é enorme: Ignácio de Loyola Lopes Brandão é um contista, romancista, jornalista brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras. Possui uma vasta produção literária, tendo sido traduzido para diversas línguas. Recebeu, entre alguns prêmios, o Jabuti em 2008. 

#Maya

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Aparências

O famoso “nem tudo é o que parece” é altamente aplicável a qualquer narrativa de cidade de interior. Não digo isso como forma de desqualifcar a obra que aqui comento, falo porque a graça de narrar sobre cidades de interior é justamente arrancar o seu véu de pureza. Já fiz esse exercício em “Santuário”, sei do que estou falando.

A primeira coisa que chama a atenção no começo da leitura é a linguagem despojada e até mesmo debochada do autor, que relata a expectativa da chegada do novo médico na pequena cidade de interior, já que o doutor em exercício está em vias de aposentadoria. Num primeiro ato de rebeldia narrativa, o subtítulo do capítulo é uma resposta ao questionamento anterior. Samson, o médico chegado, era jovem.

Existe uma vasta apresentação de personagem que nos coloca em contato com todo o círculo social de Felicidade do Norte e, de imediato, o reconhecimento do grau de importância do cidadão conforme sua filiação, igualmente típico no estereótipo narrativo das cidades de interior, com excesso de pose, e hipocrisia.

Mas um detalhe não passa despercebido: não é exatamente o narrador quem vai descortinando as relações nada inocentes entre os figurões da cidade, é o amarguradíssimo Dr. Orlando, que recebe Samson na cidade e já trata de criar meios para juntar o recém-chegado com sua filha de coração, a viuvinha Lara.

O livro em si é uma novela que não pretende grandes aprofundamentos, mas cria elos interessantes que poderiam dar a ele fôlego para um romance cheio de conflitos; uma das primeiras situações que nos é apresentada, por exemplo, é a curta existência de Dolores, considerada a moça mais bonita da cidade até sua precoce e misteriosa morte.

Mal falada pelo excesso de beleza, considerada fácil exatamente por ser inacessível aos babões da cidade, Dolores era apaixonada pelo professor Onésimo, jovem e tímido que foi, a bem da verdade, o único homem que realmente se relacionou com a moça. Da paixão rápida do casal resultou a morte de ambos. Primeiro o professor, depois a moça, ambos de doença não esclarecida.

Quando o autor nos trouxe vida e morte de Dolores com capítulos próprios e já no início da trama, fui remetida diretamente à Laura Palmer, infeliz protagonista da aclamada série “Twin Peaks”, de David Lynch. Na série, Laura, a jovem mais bonita da minúscula cidade, é encontrada morta e todas as temporadas giram em torno da investigação de seu assassinato, cuja obscuridade dá um tom de terror e fantasia à série.

Ao ver o destaque dado à Dolores, já de início do livro, e o fato de sua morte não ser esclarecida, acreditei por alguns momentos que se trataria mesmo de uma busca pelos motivos, tanto de sua morte quanto de seu amado Onésimo, já que nosso protagonista é um jovem médico. Mas não é por esse caminho que o autor nos conduz; Dolores é convertida somente a alvo de falatório através das mentiras dos que diziam ter se relacionado com ela sabendo que não seriam desmentidos. De potencial protagonista a uma personagem cuja presença é dispensável, tem como principal função ser a ponte para conhecermos Lara, transformada na mulher mais bonita da cidade depois da morte da amiga.

Mas o grande plot, e que dá razão ao cenário escolhido pelo autor, é a chegada de Jane, filha do promotor, acostumada a ter o mundo aos seus pés e que decide que quer para si também o amor do jovem médico, já apaixonado por Lara. Sem chances com Samson, apela pro golpe baixo.

Acusado de estupro, Samson vai preso. Um ponto que merece destaque é o autor apontar a série e absurdos que a situação causa; primeiro o jogo de poderes que impede o devido processo legal, o direito à defesa, afinal, Samson é o forasteiro e Jane é filha do promotor. O segundo causa ainda mais impacto: a população se reúne querendo tirar o médico da cadeia, não para corrigir a injustiça contra ele, mas para “fazer justiça com as próprias mãos”. O objetivo era mesmo destruir o homem.

Não posso deixar de pontuar que o autor perde duas oportunidades importantes que enriqueceriam a narrativa de forma expressiva: trabalhar a história de Dolores, cujo desenvolvimento não causaria danos à relação de Samson com Lara ou ao desfecho idealizado pelo autor com a falsa acusação, e o próprio desfecho em si, que acontece em alta velocidade entre a denúncia de Jane e a comprovação da inocência de Samson.

Trata-se de um livro de leitura leve e rápida, divertida pela linguagem empregada; há sarcasmo, deboche, H. Martins inegavelmente sabe brincar com a própria narrativa e isso torna a leitura fluida. Exatamente por isso entendi o potencial não só do autor ao contar a história, mas da própria história que ele criou. Dolores, por exemplo, é uma personagem com camadas, teve uma construção inteligente; caso fosse uma personagem mal desenvolvida, não sentira falta de mais espaço para ela.

Embora não deixe de ser uma crítica o não aproveitamente dessa personagem e seu amado professor pelo mistério de suas mortes, ou a pressa no desfecho, essas críticas refletem o quanto o livro merecia esse cuidado e o quanto o autor nitidamente é capaz de fazê-lo. De minha parte, tendo “Meninas comportadas, modos atrevidos” já devidamente publicado, sugiro fortemente ao autor que cogite a possibilidade de uma nova novela focada em Dolores. Dolores merece.

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Meninas comportadas, modos atrevidos

H. Martins

Penalux: Guaratinguetá, 2022

115 páginas

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H. MARTINS nasceu no ano de 1963. É poeta e romancista. Escreve artigos na área ambiental e de desenvolvimento sustentável, além de ser autor dos livros de poesia “Unha e Carne”, “Vaso Chinês”, “Todas as Cores das Flores”, “Alguns Botões de Madrepérola”; sendo este último pela Editora Penalux; e dos romances “Lábios que Beijei”, “Mais que Perfeito Simples”, “O Roseiral de Inácio”, “Crônica das Viúvas Fogosas da Ruas Direita” e “O Pródigo e o Cisne”; sendo os dois últimos, também, pela Editora Penalux. Como ambientalista escreveu “Método para Venda de Sequestro de Carbono”, “MDL – Uma composição Sustentável”, “Elementos para Concepção do Crédito de Carbono – Aquecimento Global”. Conferencista, esteve presente em congressos ambientais no Brasil, Ásia, África, América do Norte, América do Sul e Europa.

#Maya

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