A Carne Perpétua

Um bom livro de poesia é aquele que tem um volume expressivo de poemas bons – porque nada é perfeito. Um ótimo livro é aquele em que pouquíssimos poemas são ruins. Um excelente livro de poemas é aquele em que os poucos que não são incríveis, igualmente não são ruins.

Já peguei muito livro ótimo nesse tempo como resenhista e leitora crítica. Pra minha sorte, quase nenhum ruim, e muito pouco bom, a régua da qualidade dos e das poetas de literatura brasileira contemporânea é altíssima (se você é do tipo que só lê poetas mortos, não sabe o que está perdendo). Enfim, hoje vou falar de um livro excelente.

Vou começar essa resenha com uma dica de leitura de poesia que faz a diferença na hora de entender a qualidade do poema: leia no mínimo duas vezes. A primeira leitura silenciosa, íntima, que é onde você capta o conteúdo do poema. A segunda em voz alta, declamada, onde você percebe o ritmo e o impacto que o poema causa. É nessa soma de fatores que você classifica o poema entre fraco, mediano, bom e MINHA NOSSA SENHORA. Essa é a minha escala, por exemplo.

Dito isso, quando o livro A Carne Perpétua chegou às minhas mãos, a expectativa era alta porque, embora eu conheça muito pouco da obra de Lilly Araújo, eu sou quase uma expert na literatura de Viviane Santiago, minha cliente mais antiga de leitura crítica. Ainda assim, o foco geral da autora é em prosa, igualmente conhecia pouco do seu trabalho poético. Enfim, eu sabia que viria coisa boa aí.

Eu só não imaginava que era tanto.

O livro inteiro gira em torno das mazelas do universo feminino, das violências à maternidade sem o véu da romantização, por vezes sob o olhar da mulher, por vezes sob o olhar de uma narradora onisciente ou onipresente. Temos duas vozes que se completam de uma forma surpreendente; se não fosse incluído as iniciais da autora ao final de cada poema, seria possível facilmente acreditar que trata-se de uma poeta única.

Não é a primeira vez que leio livro de poesia em dupla, entretanto, na experiência anterior, o conhecimento da obra de cada autor me levou a identificar quase à perfeição o autor de cada poema mesmo que nenhum tenha sido assinado de forma aberta. em A Carne Perpétua, por exemplo, tentei o exercício de reconhecer a autora pelo teor do poema sem olhar as iniciais; errei quase todas as vezes.

A sintonia entre as duas autoras torna essa obra ainda mais interessante, exatamente porque nos presenteia com uma nuance nos pontos de vista sem, no entanto, fugir à coesão, à unidade da obra. Há um diálogo evidente, e me deixa curiosa o processo de escrita da mesma, para que cada autora conseguisse produzir seu conteúdo de forma a encaixar tão bem com o conteúdo da outra.

Durante a leitura, separei muito trechos que gostaria de ilustrar para vocês, mas separei MUITOS trechos mesmo. Embora vá sim trazer alguns deles, não tenho como, nesse espaço, retratar a dimensão da qualidade poética e estética desse livro. Vou tentar, mas já sei que vou falhar miseravelmente.

"Minha mãe,
antes de entender de que matéria-prima
são feitas as mães,
antes mesmo de compreender
a magina que lhe habitava por entre as pernas,
foi tecendo retalhos de esperança no seu ventre,
com tessitura poética.
"
"oito natimortos
que foram morar no céu,
um céu que eu inventei
por não ter onde guardar
tanta falta,
tantos filhos,
tantos rostos.
Quantos homens em minha cama
para fecundar um ventre
quase sempre
em luto."
"Os animais sabem mais do tempo
que todos os relógios."
"Retratos
pendurados
em desalinho
numa mureta sem prumo
de alcunha nova:
Feminicídio.
'A sociedade secreta das mulheres invisíveis'
ganha doze membros por dia
só no Brasil"

Trouxe pequenos, minúsculos recortes, apenas trechos de apenas 4 poemas que compõem o vulume; era preciso muito mais para transmitir a dimensão dessa obra, mas corria severo risco de transcrever o livro inteiro por aqui.

Nesses recortes, trouxe dois de cada autora, propositalmente não citados os nomes, que estão registrados pelas iniciais ao final de cada poema. Não vou priva-los de conhecer, no próprio livro, as nuances de cada uma.

Em tempo: reconheci, em alguns poemas de Viviane, conexão com sua prosa, em especial seu próximo lançamento, o qual tive o imenso prazer de fazer a leitura crítica.

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A Carne Perpétua

Lilly Araújo e Viviane Santiago

Telucazu: Jundiaí, 2023

117 páginas

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Lilly Araújo
Premiada poeta, artista plástica e bióloga, é metamorfose, mesmo às avessas. Publicou em 2016 o livro "Som do Coração", selecionado, pela Secretaria Municipal de Cultura de Anápolis, para integrar a coleção Anápolis em Letras Fatos e Imagens. Tem vários textos publicados em antologias, com classificações em concursos literários nas modalidades de poesia, conto e crônica.
Em 2014 foi empossada na cadeira 27 da Academia de Letras do Brasil - seccional Anápolis. Desde 2015 também é membro da ULA (União Literária Anapolina). Em 2020 recebeu o Troféu Natividade do 55.º FEMUP (Festival de Música e Poesia de Paranavaí). Pela Telucazu publicou Kafka FDP, Ùmidos Poemas e A Carne Perpétua.
Viviane Santyago
É jornalista e professora, autora de sete livros, todos premiados. Recebeu por sua obra As Dez Marias (Patuá, 2019) o primeiro lugar como escritora do ano no Prêmio Guarulhos de Literatura 2020 e o terceiro lugar como o livro do ano. A obra também venceu a primeira edição do Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 200 Anos de Independência do Brasil (Ministério da Cultura 2018). Em 2020, foi a vencedora do II Prêmio CEPE de literatura infantil, com sua obra: A Biblioteca da Bia. Pela Telucazu Edições lançou seu primeiro livro, A Linha Amarela do Metrô (PROAC 31/2017), finalista do Prêmio Guarulhos de Literatura 2019. Seus mais recentes lançamentos: o infantojuvenil Caixa de guardar segredos de família (PROAC 20/2020) e Por amor eu te benzo, eu te curo, eu te livro: As Benzedeiras de São Paulo (PROAC 23/2020), Os Lares de Laura e A Carne Perpétua.

#Maya

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