Aparências

O famoso “nem tudo é o que parece” é altamente aplicável a qualquer narrativa de cidade de interior. Não digo isso como forma de desqualifcar a obra que aqui comento, falo porque a graça de narrar sobre cidades de interior é justamente arrancar o seu véu de pureza. Já fiz esse exercício em “Santuário”, sei do que estou falando.

A primeira coisa que chama a atenção no começo da leitura é a linguagem despojada e até mesmo debochada do autor, que relata a expectativa da chegada do novo médico na pequena cidade de interior, já que o doutor em exercício está em vias de aposentadoria. Num primeiro ato de rebeldia narrativa, o subtítulo do capítulo é uma resposta ao questionamento anterior. Samson, o médico chegado, era jovem.

Existe uma vasta apresentação de personagem que nos coloca em contato com todo o círculo social de Felicidade do Norte e, de imediato, o reconhecimento do grau de importância do cidadão conforme sua filiação, igualmente típico no estereótipo narrativo das cidades de interior, com excesso de pose, e hipocrisia.

Mas um detalhe não passa despercebido: não é exatamente o narrador quem vai descortinando as relações nada inocentes entre os figurões da cidade, é o amarguradíssimo Dr. Orlando, que recebe Samson na cidade e já trata de criar meios para juntar o recém-chegado com sua filha de coração, a viuvinha Lara.

O livro em si é uma novela que não pretende grandes aprofundamentos, mas cria elos interessantes que poderiam dar a ele fôlego para um romance cheio de conflitos; uma das primeiras situações que nos é apresentada, por exemplo, é a curta existência de Dolores, considerada a moça mais bonita da cidade até sua precoce e misteriosa morte.

Mal falada pelo excesso de beleza, considerada fácil exatamente por ser inacessível aos babões da cidade, Dolores era apaixonada pelo professor Onésimo, jovem e tímido que foi, a bem da verdade, o único homem que realmente se relacionou com a moça. Da paixão rápida do casal resultou a morte de ambos. Primeiro o professor, depois a moça, ambos de doença não esclarecida.

Quando o autor nos trouxe vida e morte de Dolores com capítulos próprios e já no início da trama, fui remetida diretamente à Laura Palmer, infeliz protagonista da aclamada série “Twin Peaks”, de David Lynch. Na série, Laura, a jovem mais bonita da minúscula cidade, é encontrada morta e todas as temporadas giram em torno da investigação de seu assassinato, cuja obscuridade dá um tom de terror e fantasia à série.

Ao ver o destaque dado à Dolores, já de início do livro, e o fato de sua morte não ser esclarecida, acreditei por alguns momentos que se trataria mesmo de uma busca pelos motivos, tanto de sua morte quanto de seu amado Onésimo, já que nosso protagonista é um jovem médico. Mas não é por esse caminho que o autor nos conduz; Dolores é convertida somente a alvo de falatório através das mentiras dos que diziam ter se relacionado com ela sabendo que não seriam desmentidos. De potencial protagonista a uma personagem cuja presença é dispensável, tem como principal função ser a ponte para conhecermos Lara, transformada na mulher mais bonita da cidade depois da morte da amiga.

Mas o grande plot, e que dá razão ao cenário escolhido pelo autor, é a chegada de Jane, filha do promotor, acostumada a ter o mundo aos seus pés e que decide que quer para si também o amor do jovem médico, já apaixonado por Lara. Sem chances com Samson, apela pro golpe baixo.

Acusado de estupro, Samson vai preso. Um ponto que merece destaque é o autor apontar a série e absurdos que a situação causa; primeiro o jogo de poderes que impede o devido processo legal, o direito à defesa, afinal, Samson é o forasteiro e Jane é filha do promotor. O segundo causa ainda mais impacto: a população se reúne querendo tirar o médico da cadeia, não para corrigir a injustiça contra ele, mas para “fazer justiça com as próprias mãos”. O objetivo era mesmo destruir o homem.

Não posso deixar de pontuar que o autor perde duas oportunidades importantes que enriqueceriam a narrativa de forma expressiva: trabalhar a história de Dolores, cujo desenvolvimento não causaria danos à relação de Samson com Lara ou ao desfecho idealizado pelo autor com a falsa acusação, e o próprio desfecho em si, que acontece em alta velocidade entre a denúncia de Jane e a comprovação da inocência de Samson.

Trata-se de um livro de leitura leve e rápida, divertida pela linguagem empregada; há sarcasmo, deboche, H. Martins inegavelmente sabe brincar com a própria narrativa e isso torna a leitura fluida. Exatamente por isso entendi o potencial não só do autor ao contar a história, mas da própria história que ele criou. Dolores, por exemplo, é uma personagem com camadas, teve uma construção inteligente; caso fosse uma personagem mal desenvolvida, não sentira falta de mais espaço para ela.

Embora não deixe de ser uma crítica o não aproveitamente dessa personagem e seu amado professor pelo mistério de suas mortes, ou a pressa no desfecho, essas críticas refletem o quanto o livro merecia esse cuidado e o quanto o autor nitidamente é capaz de fazê-lo. De minha parte, tendo “Meninas comportadas, modos atrevidos” já devidamente publicado, sugiro fortemente ao autor que cogite a possibilidade de uma nova novela focada em Dolores. Dolores merece.

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Meninas comportadas, modos atrevidos

H. Martins

Penalux: Guaratinguetá, 2022

115 páginas

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H. MARTINS nasceu no ano de 1963. É poeta e romancista. Escreve artigos na área ambiental e de desenvolvimento sustentável, além de ser autor dos livros de poesia “Unha e Carne”, “Vaso Chinês”, “Todas as Cores das Flores”, “Alguns Botões de Madrepérola”; sendo este último pela Editora Penalux; e dos romances “Lábios que Beijei”, “Mais que Perfeito Simples”, “O Roseiral de Inácio”, “Crônica das Viúvas Fogosas da Ruas Direita” e “O Pródigo e o Cisne”; sendo os dois últimos, também, pela Editora Penalux. Como ambientalista escreveu “Método para Venda de Sequestro de Carbono”, “MDL – Uma composição Sustentável”, “Elementos para Concepção do Crédito de Carbono – Aquecimento Global”. Conferencista, esteve presente em congressos ambientais no Brasil, Ásia, África, América do Norte, América do Sul e Europa.

#Maya

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Uma resposta em “Aparências

  1. Maya Falks, excelente escritora (do blog Bibliofilia Cotidiana), fez esta generosa resenha sobre meu livro “Meninas comportadas, modos atrevidos”. Fiquei muito feliz com a firmeza do seu texto. Obrigado, Maya!

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