Emma e o poliamor

ALERTA SPOILER: trata-se do segundo volume de uma trilogia. Recomenda-se que leia o primeiro antes dessa resenha.

Anos atrás estabeleci como regra que não resenharia alguns gêneros por limitações minhas mesmo. Um desses gêneros era o erótico, por desconforto pessoal com o gênero e desinteresse em explorar mais o que ele oferece. Mas o tempo passa, os conceitos mudam e eu fui entendendo a diferença nada sutil entre o erótico e o pornográfico.

A partir da quebra das minhas próprias barreiras e limitações, pude compreender que, embora o erotismo já seja bastante explícito, ele não se limita ao sexo apenas como uma descrição sem uma razão de ser que não a própria finalidade da pornografia em qualquer que seja o veículo.

Embora não negue que o gênero me causa desconforto, sempre deixei claro que esse espaço desconsidera minhas questões e opiniões pessoais. Quem visita este blog está interessado na análise crítica do livro realizado por mim enquanto profissional, e não na minha opinião pessoal acerca do mesmo.

Dito isso, aceitei o desafio de iniciar 2024 com a primeira resenha de um livro do citado gênero, ainda como uma aprendiz em estabelecer o olhar crítico tão necessário para realizar esse trabalho com o mesmo cuidado e respeito com o qual realizei as mais de 200 resenhas com compoem o acervo do blog.

Não há pudor. Passei a admirar a coragem de autoras e autores do gênero em quebrar tabus e falar abertamente de sexo em uma sociedade que o incentiva e o criminaliza ao mesmo tempo. E quando falo em “abertamente”, falo de forma explícita, com direito a descrições bastante claras do corpo e do ato em si.

Em “Emma e o poliamor”, Ilana Eleá nos apresenta Emma, uma sueco-brasileira que tem a sexualidade e o empoderamento feminino como tema de sua dissertação de mestrado, e o foco do seu trabalho é justamente a liberdade sexual e amorosa em modelos não-monogâmicos de relacionamento, nas suas mais diversas variáveis.

Antropóloga, Emma tem como objetivo inicial observar casais que se relacionam de maneira aberta ou poliamorosa sob supervisão da psicanalista Caia, além de trabalhar casos individuais como a camgirl Juliana, que mantém um relacionamento aberto com Nicolas. Aberto, mas nem tão aberto assim. Juliana estabelece regras as quais Nicolas tem dificuldade de manter quando se envolve justamente com Emma.

Já desde esse primeiro momento, com o caso iniciado com Nicolas, Emma reconhece que ultrapassou os limites éticos de sua função como pesquisadora e, em mais de uma ocasião, teme ser denunciada e perder sua bolsa de pesquisa.

Mas o receio de Emma não a impede de seguir se envolvendo mais e mais com o tema, de forma bastante pessoal colocando, inclusive, seu próprio relacionamento monogâmico em risco. Com a ajuda de Caia e Ava, uma mulher adepta não apenas do poliamor, mas das casas de swing, Emma é apresentada a um universo de modelos de relacionamento que vão de metamores, trisais até bondage, a qual Emma experimenta como uma técnica erótica que não envolve afeto ou contato físico, digamos, profundo.

Ilana, nesta obra, nos conduz à própria autodescoberta de Emma, do seu corpo, dos seus desejos e prazeres, do seu desejo de liberdade sexual e seu conflito sobre os limites éticos da sua pesquisa, deixando o papel de observadora para participante ativa de cada experiência.

Sua entrega revela que o interesse no assunto nunca foi meramente acadêmico, mesmo que ela não tivesse completa noção disso quando iniciou sua pesquisa. É provável que a pesquisa tenha nascido de sua inquietação sobre o modelo que norteava sua relação com o namorado sueco, tão distante do calor carioca que a levou diretamente aos braços de Nicolas.

E a autodescoberta vai muito além de seu corpo e sua sexualidade: ela também se descobre dentro de seu núcleo familiar quando uma emergência a leva de volta ao país europeu para reencontrar os pais e o namorado. As farsas perdem espaço quando Emma entende que o modelo de relacionamento que ela se propôs a contestar é, de muitas maneiras, um modelo falido, e que os amores não foram feitos para conhecer limites.

A desconstrução do ciúme, a exposição do sentimento de posse e a exposição que o poliamor ou outras formas não-monogâmicas de relacionamento nunca foram novidade no universo masculino, mesmo que de forma secreta, foi à mulher a negação do direito de viver sua sexualidade plenamente. Emma, inclusive, junto às mulheres com quem interage ao longo de sua experiência, aponta que o julgamento recai somente sobre a mulher, enquanto o comportamento poliamoroso do homem é visto como instintivo, da natureza masculina.

Embora se trate de uma obra de ficção, Ilana não se priva ao debate, aos conceito e à exposição crua de uma realidade que sempre existiu, só se tornou mais explícita com a emancipação feminina sobre os próprios desejos.

Entretanto, não posso ignorar pontos que merecem atenção. Não é somente a falta de ética de Emma que grita, tornando sua participação enquanto pesquisadora extremamente questionável e inadequada para a imagem de pesquisadores reais – Emma parece completamente incapaz de manter o autocontrole diante de situações que considera excitantes, e isso acontece diversas vezes ao longo da narrativa – mas também a participação de Caia enquanto psicanalista.

Temos uma profissional que recebe Emma em seu consultório e cuja conduta nada lembra a psicanálise, uma vez que seu trabalho é basicamente conduzir casais confusos para um modelo não-monogâmico da relação. É quase uma indução que culmina em um evento coletivo cuja terapeuta providencia transporte à cidade turística de Paraty para uma desconstrução do ciúme. A passagem é confusa com a chegada de outro grupo conduzido pelo profissional de bondage que Emma passou a frequentar, e há, nessa sequência, uma cena de sexo envolvendo a psicanalista, o que deixa a narrativa um tanto desconfortável.

Tendo a ver Emma como uma pessoa em conflito com suas autodescobertas em contraste com sua reconhecida falta de ética, mas ao mesmo tempo não parece que sua formação em antropologia seja páreo para seu gosto por sexo e a facilidade com que sua excitação a desvia do caminho da sua formação acadêmica.

OBSERVAÇÃO: precisamos estar sempre abertos ao aprendizado. Em diálogo com a autora, ela me esclareceu que ela mesma é profissional da área e pesquisadora, e que, portanto, houve embasamento na construação das personagens aqui citadas. O envolvimento pessoal com a pesquisa não é um fato incomum – talvez o grande choque seja pelo puritanismo uma vez que se trata de sexo. Igualmente existem psicanalistas que atuam na área. Não alterei a resenha em si por assumir minhas impressões, mas é importante que se façam ressalvas que valorizem o trabalho de construção e pesquisa do autor, por isso tomei a iniciativa de trazer esse esclarecimento, sem que ele tenha sido solicitado pela autora.

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Emma e o poliamor

Ilana Eleá

Patuá; São Paulo, 2022

184 páginas

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lana Eleá é doutora em Educação pela PUC-Rio e mora na Suécia desde 2011. Autora dos livros Encontros de neve e sol (e-galáxia, 2017), Poemas Acesos (Patuá, 2020), Emma e o Sexo (e-galáxia, 2021) e Fio de corte, escrito com Lucelena Ferreira e Ângela Brandão (7letras, 2022). Emma e o Poliamor é o segundo volume da sua trilogia erótica Emma. Atualmente se dedica aos estudos para obter o título de Certified Sex Coach pela instituição norte-americana Sex Coach U e faz cursos na área de Sexologia nas universidades suecas de Malmö, Gotemburgo e Estocolmo.

#Maya

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