[Mês da Mulher] Nossa Senhora da Palavra

Maria Valéria Rezende deveria dispensar apresentações, porque afinal, ela é a Maria Valéria Rezende e qualquer pessoa que se autointitule leitora tem obrigação de conhecer esse ícone. Mas vou apresentar mesmo assim pra não dizerem que usei da fama dela pra fazer um trabalho preguiçoso.

Paraibana de corpo, alma e coração, Maria Valéria nasceu em Santos (SP), mas isso é só um detalhe. Ao longo de sua juventude, quando não esteve em sua amada Paraíba, esteve no resto do mundo se dedicando à Educação Popular.

Nossa grandiosa Maria Valéria é formada em Língua e Literatura Francesa, Pedagogia e Mestre em Sociologia e passou a se dedicar à publicação de suas obras às vésperas de seus 60 anos. Entre livros próprios, antologias e criação de coletivos, Maria Valéria coleciona 5 jabutis, um Casa de Las Américas e um Prêmio São Paulo, sem contar os 2ºs, 3ºs lugares, ou todos os prêmios em que foi finalista, semifinalista ou menção honrosa.

Sem mais delongas, seguimos para nossa entrevista com Maria Valéria Rezende (até porque não faria nenhum sentido a entrevista ser com outra pessoa depois dessa introdução):

  1. Em que momento da sua vida você decidiu que queria ser escritora? Existiu esse momento ou foi algo que foi simplesmente acontecendo?

Eu nunca decidi que queria ser escritora!  Decidi, sim, e me lembro muito bem quando, que não queria ser escritora (como tanta gente com quem eu convivia, sendo de família cheia de escritores), e viver trancada em casa escrevendo. Eu queria correr mundo. Talvez ser jornalista internacional como um primo meu de quem gostava muito, mas nos anos 50 mulher não tinha chance de ser jornalista aventureira internacional. A alternativa era ser missionária. Corri mundo… nunca parei de escrever, coisa normal para mim, que achava, quando criança, que todo o mundo um dia escrevia um livro. Só quase aos 60 anos, por acaso, publiquei um primeiro romance, daí peguei gosto porque também já estava ficando velha pra correr mundo!  

2. Como funciona seu processo criativo?

Cada livro ou cada conto é por um caminho diferente. Em geral meu ponto de partida é um ou vários personagens, os invisíveis, que creio que precisam ser mostrados para que a gente seja mais humana. Eles ficam vivendo em minha cabeça, por um bom tempo, até que comecem a falar, e que uma voz narrativa própria se faça ouvir… daí escrevo umas primeiras 30 páginas para não perder essa voz e depois, quando consigo o tempo necessário, vou continuando. Como direito autoral não paga a conta da padaria, tenho de me ocupar muito de traduções e outros serviços. Quando tenho a sorte de ganhar um patrocínio ou um prêmio, então continuo e acabo um dos livros “em processo”. Tenho um bocado de romances começados que não terei tempo de acabar!

3. Qual a importância da pesquisa dentro do seu processo criativo?

Depende. Muita coisa que escrevo é resultado da “pesquisa” prática que é a minha própria vida de educadora popular. Nesse caso a memória resolve. Em outros casos, como as “Cartas à Rainha Louca”, resultado de uma pesquisa que iniciei muitos anos, décadas mesmo, antes de “virar” escritora…  simplesmente me interessava muito a vida das freiras ao longo da História, parte muito reveladora da história das mulheres ao longo dos séculos. Então, um dia, percebi que a maneira mais interessante de relevar tudo o que eu tinha descoberto, era escrevendo um romance. No caso dos “Quarenta dias”, eu tinha a linha geral do romance que queria escrever, e fui fazer o que chamam de “laboratório”, passando 15 ou 20 dias andando pelas ruas de Porto Alegre e me metendo pelos avessos da cidade, sem fazer anotações. Só depois de ter digerido bem a experiência foi que me pus a redigir.

4. Quem são suas referências na literatura?

Desde os sete anos de idade que leio quatro a cinco livros por semana. Leio muito depressa… conforme fui crescendo os livros foram ficando mais grossos… tudo isso está metido lá na minha cabeça! Muitas vezes um livro fica “na moda”, porque fizeram uma tradução recente… fico curiosa e vou ler,  pra descobrir depois de algumas páginas que eu já tinha lido aquilo há muito tempo! Então, minhas referências são os outros, os leitores, que descobrem… eu não me preocupo com isso. Só sei que minha cabeça nasceu vazia de palavras… tudo o que sai dali é porque um dia entrou!

5. Qual foi a situação mais peculiar que a literatura já te proporcionou?

Ter vivido a vida toda, até os 60 anos, tratando de ser o mais invisível possível, porque isso era condição para fazer o meu trabalho de educadora popular, e, de repente, ter que pagar o preço de uma visibilidade excessiva!

6. Tem algum de seus livros que você gostaria de mudar ou se arrepende de ter escrito/publicado?

Nenhum! Às vezes me divirto relendo meus livros e me surpreendendo com o que está escrito ali, que eu nem lembrava. Releio-os como leitora e não como autora e gosto deles. Essa é a vantagem de só escrever depois de velha! Hoje se tornou relativamente fácil publicar, então às vezes os jovens se precipitam, antes de ter amadurecido o que têm pra dizer, depois amadurecem e renegam o que publicaram. Eu nem tenho mais tempo pra renegar nada! 

7. Qual livro da literatura universal você gostaria de ter escrito?

Dom Quixote! Cervantes deve ter-se divertido muito escrevendo aquilo e imaginando a cara do leitor quando lesse!

8. Quem são os autores/autoras da literatura brasileira contemporânea que você indicaria aos leitores do Bibliofilia Cotidiana?

Nossa! É tanta gente que eu passaria agora o resto da quarentena, ou quaresma, do vírus fazendo a lista. Só pra não deixar esta resposta em branco, aponto o que acabei de ler e estou relendo esta semana: “Maria Altamira”, de Maria José Silveira, imperdível!

9. Vivemos tempos estranhos com a ascensão fascista no mundo todo e uma pandemia mudando o curso social e econômico do planeta. Você acha que essas situações mais extremas contribuem com o fortalecimento criativo das artes?

Só poderemos refazer o mundo de novo jeito se mantivermos nossas almas vivas! As artes são alimento e cura para nossas almas!

10. Quais livros são indispensáveis para um/a escritor/a?

Todos! Meu pai sempre dizia que todo livro vale a pena ler, mesmo que seja apenas para se saber como não se deve escrever! Em nossa casa, cheia de livros, nenhum era proibido para mim, mas havia uma regra: se começar a ler vai ter de ir até o fim, proibido abandonar a leitura a meio do caminho…  com isso, ele me orientava; se eu pegasse um livro que ele não achava apropriado para a minha idade, dizia: “pense bem se quer mesmo ler esse livro, porque vai ter de ir até o fim!”

Para comprar os livros de Maria Valéria Rezende, acesse aqui!

________________________

Maria Valéria Rezende é uma pessoa ímpar. Fiz a proposta da entrevista ainda no começo do mês, ela aceitou prontamente, mas o volume de perfis foi tão alto que a elaboração das perguntas foi ficando pra depois porque já planejava essa entrevista como “semifechamento” do mês (sim, ainda tem amanhã). Foi ela mesma quem me cobrou o envio.

Me diverti e aprendi com as respostas, espero que tenha acontecido o mesmo com vocês. É uma emoção muito grande poder trazer uma entrevista com uma pessoa como Maria Valéria Rezende para esse blog.

#Maya

SEJA UM APOIADOR BIBLIOFILIA COTIDIANA

Você pode contribuir mensalmente e receber uma recompensa através do Apoia, neste link: https://apoia.se/bibliofiliacotidiana?fbclid=IwAR0A3ci_WUwVGt2vVosTOjM1ulwemfsTGp-krE5KbS897OZ2k35hrznci3Y ou, se preferir contribuições esporádicas, contate-me no e-mail bibliofilia.cotidiana@gmail.com para dados de depósito.

Nenhum conteúdo do blog é cobrado de autores e/ou editoras, por isso depende de contribuições voluntárias de quem puder ou achar justo.

O Bibliofilia Cotidiana agradece!

Deixe um comentário