Os lutos de Natalia Timerman

Desde o início do ano tenho utilizado os títulos dos livros para fazer as resenhas, facilita ao leitor encontrar a resenha de que deseja ler. Não que só tenha durado até abril, mas dessa vez o que pegou é que li os dois livros que tenho de Natalia Timerman em sequência. Ok, já fiz leitura sequencial que rendeu um post de obras completas de Daniela Arbex (agora incompleta com o novo lançamento), mas dessa vez vai ser diferente, porque os livros têm um fortíssimo elemento comum.

Antes de prosseguir para o que de fato interessa, a vantagem desse blog ser apenas um blog com apenas uma pessoa produzindo conteúdo é que não tenho as mesmas obrigações textuais de outros resenhistas em portais ou veículos de comunicação, e isso me permite uma palavrinha pessoal: moro no interior do RS e nunca tive grandes oportunidade de estar ao vivo com pessoas que integram o fervo editorial do centro do país; quando tenho raras oportunidades desses encontros, os vivo como se não houvesse amanhã.

Quando Natalia Timerman esteve em minha cidade, no ano de 2022, eu era a patrona da Feira do Livro para a qual ela tinha sido convidada. Conhecia de um ou outro contato virtual, mas conhecê-la ao vivo, recebê-la na terrinha produziu em mim um efeito difícil de explicar. Posteriormente, em 2023, estive em São Paulo, ela estava lançando “As pequenas chances” e saiu da editora, depois de autografar centenas de livros, diretamente para onde eu estava apenas para me dar o privilégio de um abraço. Foi assim que me senti. Quando li os dois livros em sequência, esse sentimento foi fortalecido e representou, como tanto me emociona, uma sensação de pertencimento. Pude vê-la, em minha imaginação, escrevendo esses livros.

Dito isso, bom momento para falar deles.

Embora a formatação do blog tenha escolhido colocar “As pequenas chances” primeiro, “Copo vazio” foi lançado e lido antes. O elemento comum entre eles já entrego no título dessa resenha: o luto. As histórias não guardam qualquer relação narrativa, contam histórias completamente diferentes, mas ambas trabalham a perda como tema central.

Obviamente entendo quem achar demasiadamente absurdo comparar uma ficção sobre ghosting com a história real da perda de um pai, mas aqui a análise é narrativa e temática, e não do peso de cada história para a autora, já que aproveito para indicar os livros ao público; quem jamais passou pelo falecimento de uma pessoa muito importante mas já foi abandonado da forma mais cruel por uma pessoa amada vai sentir muito mais o peso emocional justo do que não parece tão grave, na visão de quem escreveu.

Em “Copo Vazio” temos Mirela, que nem estava assim tão no clima de conhecer alguém até Pedro entrar na sua vida. A história, na verdade, começa meio que pelo final e sim, a situação que Natalia nos apresenta não causa espanto nem chega a ser um plot twist pro final, mas claramente nem era essa a ideia.

E então, Mirela, uma mulher independente e bem resolvida, se vê presa a uma dependência emocional imensa por um homem que recém conheceu, que ainda não construiu realmente uma relação com ela, e ele, sem nenhuma explicação, some. Do nada. Eles tinham planos, a relação parecia estar caminhando para um compromisso até que o homem simplesmente foge, da forma mais covarde possível, sem um diálogo, sem nada.

A visão que temos é de Mirela, e talvez isso faça parecer que a coisa estava mais séria do que realmente estava, mas isso de forma alguma serve como argumento para diminuir a dor da protagonista. Há um vazio quase impossível de ser preenchido porque a pessoa abandonada sequer sabe o que encaixar naquele espaço, já que quem o preenchia não abriu mão, de fato; há sempre a possibilidade – e a esperança – de que só tenha acontecido algum imprevisto e ele retornará a qualquer momento justificando e se desculpando pelo sumiço.

Já, do outro lado, temos Natalia, a pessoa real de carne e osso, que sofreu a perda definitiva. O pai não escolheu partir, não existe possibilidade do retorno, Natalia não está em suspenso sem saber o que vai acontecer nessa relação de amor entre um pai e seus filhos, já que Natalia ainda tem dois irmãos. Entretanto, uma das coisas mais intensas que ela trouxe em “As pequenas chances” é justamente o quanto o mundo simplesmente continua girando depois de uma pessoa de tamanha importância partir.

Como pode? É uma pergunta que bate na mente de qualquer pessoa que precisa passar pela despedida definitiva. E agora? Como vai ser o dia de amanhã sem aquela pessoa? Como podem as pessoas seguirem suas vidas enquanto aquela pessoa amada não existe mais? E, no caso de Natalia, ainda existe toda uma rotina a qual precisou se acostumar por conta da doença do seu pai e que, num único suspiro, também não existe mais, o dia seguinte é levantar da cama e tocar em frente como se nada tivesse acontecido, mesmo que seja impossível.

Perdi pessoas que me eram fundamentais. Minha avó, já há 12 anos inalcansável para mim, é de quem tenho menos dificuldade de lidar com a ausência, devido ao tempo transcorrido, mas me criei na casa dela; quando ela partiu, eu morava em outra cidade e meus primeiros retornos foram de uma esquisitisse sem tamanho, ela simplesmente não estava mais lá. Até há pouquíssimo tempo, eu lembrava o telefone da sua casa. Meu tio, falecido há 7 anos, estava ainda em plena atividade, mesmo com a idade que já somava. Em seu celular ainda haviam mensagens a serem respondidas, a vida ainda estava acontecendo quando ele simplesmente não estava mais lá. É fácil entender aquilo que é impossível explicar. Natalia foi certeira na sua tentativa, mas ausência de uma explicação concreta.

Em “As pequenas chances”, Natalia encontra num aeroporto – de onde partiria para uma viagem longuíssma ao leste europeu – o médico responsável pelos cuidados de seu pai quando nada mais poderia ser feito, somente deixa-lo o mais confortável possível para a passagem, e é justamente esse encontro que a transporta de volta para os últimos dias dele. Não apenas isso, mas a angústia pelo retorno a tempo da irmã de viagem a trabalho (que é justamente quem está com ele no momento final) e a inevitável pergunta de como será possível viver o dia seguinte, quando a hora chegar.

Natalia vive, tem seu trabalho, seu companheiro, seus filhos, tem muito para onde voltar quando um de seus maiores laços com sua própria história já não está mais lá. Mirela vive, embora quase se perdendo de si enquanto não sabe o que fazer com o vazio deixado por Pedro. São duas ausências. Natalia encontra um pedaço do pai em uma inesperada viagem por cidades que contam a história de sua família, Mirela entra em outros relacionamentos e traz ao mundo sua criança e maior amor da vida.

Seguir em frente, entretanto, não representa curar a ferida da perda. Por mais amores e felicidades que Natalia venha a ter e sentir, o pai não estará mais lá. Por mais histórias e possibilidades que Mirela poderá encontrar, a dor causada por Pedro será sempre uma constante, ou, como o nome do que ele fez com ela, um fantasma.

Aliás, o próprio nome do segundo livro não deixa margem para dúvida: “Copo vazio” é justamente essa a ideia do abandono repentino. Está lá, em todo lugar, o rastro da pessoa, mas não ela. O ghosting pode parecer uma grande bobagem para quem olha de fora. “Supera”, “segue em frente”, todas fórmulas baratas que só funcionam com quem não está vivendo. Também vivi minha história de ghosting e lembro com imensa clareza, mesmo que já tenham se passado mais de 15 anos, que minha vida se tornou uma busca e uma espera. Fiquei meses com minha existência como um todo suspensa porque eu não buscava somente a pessoa, mas uma explicação para o desaparecimento. O que aconteceu comigo – e que acontece com a maioria – é que eu cheguei a duvidar que a pessoa sequer existia. Lembro que cheguei a mostrar fotos para minha mãe e perguntar a ela se ela via a outra pessoa ali, porque tive medo, pânico, de ter criado na minha cabeça, uma história que nunca aconteceu, e que o desaparecimento nada mais foi do que os mecanismos da minha cabeça voltando a funcionar.

Como experiente nos temas dos dois livros, não sou capaz de mensurar qual das dores nos destrói mais. Talvez eu cause algum tipo de revolta com a minha conclusão, mas penso que o luto produzido pelo ghosting tem um poder de destruição emocional maior que a morte. A morte não é uma escolha, não é um abandono (exceto em casos que não estão relacionados com essas narrativas), a pessoa que morreu está ali, em um túmulo, uma urna, onde a cultura dos que ficam determinar que ela deva ficar. A morte produz um luto que vai se transformando, eventualmente, nas boas recordações que ficaram; o abandono produz apenas o vazio (e uma quebra dolorosa de autoestima).

Os dois livros são narrados de forma bonita, quase singela, e nos levam a lugares completamente diferentes, o que torna o ponto de encontro, o luto, um tema com as mais diversas versões, interpretações e sentimentos. Testemunhar Natalia resgatando memórias de família que, de certa forma, revivem sua trajetória emocional com seu pai, tem uma leveza que Mirela perdeu e, mesmo que siga em frente, é um pedaço de si que foi arrancado e não pode ser substituído.

As duas obras oferecem experiências de leituras e identificações completamente diferentes entre si, mas mostram o tato de Natalia com um tema tão delicado como o luto, além de trazer duas faces tão diversas da mesma dor.

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Copo Vazio, 2021, Todavia, 140 páginas

As pequenas chances, 2023, Todavia, 197 páginas

Natalia Timerman

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Natalia Timerman é uma médica psiquiatra, psicoterapeuta, crítica literária, pesquisadora e escritora brasileira. Possui graduação em medicina pela Universidade Federal de São Paulo, mestrado em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo e especialização em escrita pelo Instituto Vera Cruz.

#Maya

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